Esta
frase inusitada e pretendida como um insulto – pasmem - me foi dirigida por um
amigo! Dizem, e nem sempre rezo por esta cartilha, mas dizem que pela boca dos
amigos verdadeiros sabe-se a verdade. Neste caso embora se trate de um amigo de
fé, tenho certeza e há muito tempo, a verdade não se revela. A bem desta
verdade, tão invocada neste início, foi este meu amigo levado a esta espúria
declaração pelo pecado capital da Inveja. Não admitindo se render à qualidade
da blanquette de veau que faço há anos, e que ele só recentemente tentou
executar, procurou denegri-la. Isto por que ele, misto de jornalista e cordon
bleu (nas horas vagas), orgulha-se de ter produzido uma que tem assinatura. Isto
é, a receita da blanquette lá dele foi publicada em veículo de mundial
circulação.
A
minha não! Tem origem numa pequena cidade do sul da França onde os habitantes,
mais afeitos ao patois que ainda se fala na região, não vêem (nem querem ver)
suas receitas centenárias distribuídas ao nível mundial por um jornal americano.
Aqui uma curiosidade que nada tem a ver com a blanquette: diz-se que nesta
cidade quando o trem pára na estação o chefe, aos gritos, faz a seguinte
declaração, fazendo soar a frase com um “te” ao final das palavras: “Mazamette!
Cinq minuttes d’arrette. Bufettes derière les cabinettes”. Mas voltando a
Mazamet e à minha blanquette: faz tempo que recém casada me foi ensinada a
receita por uma habitante desta cidade coincidentemente, madrinha de meu
marido.
Marraine,
como a chamávamos, era uma extraordinária cozinheira, como o eram Mami (minha
sogra) e Tatá Lili (sua irmã), todas nascidas e criadas em Mazamet. Entre elas
fizeram um pacto para formar esta bugre que vos fala nas artes da cozinha. Devo
a elas a maneira por que hoje me desembrulho neste departamento. Entre citações
de Proust e de Pierre Loti passei horas tentando acertar, sob a severa
orientação das três – acreditem - o ponto e a forma exata de um ovo poché!!.
Minha sogra era tão requintada que em sua cozinha havia uma tesoura que era
usada única e exclusivamente para cortar os fiapos deste ovo dotando-o de uma
forma mais que perfeita. Não consegui chegar a isto. Quem sabe quando eu ficar
grande... Todas as vezes que tento fazê-lo soam em meus ouvidos as exclamações:
“Voyons! Il faut faire attention,
ma petite! Comme tu est maladroite!”
Conheci
meu marido tinha eu uns 7 anos. Naquela época ele não me encantou nem um pouco!
Ao contrário era um garoto chatíssimo que tinha um pônei (também sofri de
inveja, meu querido Jorge. É terrível!) e se vestia como o Pequeno Príncipe de
quem tinha os cabelos louros, encaracolados e revoltos. Mas mesmo tendo que
aturá-lo eu ia constantemente a seu sítio em Miguel Pereira para onde eu me
sentia irresistivelmente atraída por um sanduíche de pão quente com uma barra
de chocolate que me era oferecido por aquela que mais tarde atenderia pela
denominação de sogra. E, delícia das delícias, por um copo de vinho misturado
com água e açúcar que me era oferecido no almoço. Outro parêntese: o sítio
chamava-se Lustaloo que quer dizer casa pequena em patois.
E foi em Lustaloo, muitos anos depois, que a
blanquette fez parte de minha pós-graduação. Não que fosse complicada a
confecção. Mas revestia-se de uma importância conferida pela tradição
construída em centenas de anos. E é aí que a coisa pega para este meu amigo. A
minha blanquette tem história. Tem passado. Gerações e gerações a degustaram.
Tem berço, querido! Fico imaginando o
que ocorrera com você quando souber que faço uma sauce aïolli digna do Olimpo.
Além do pecado da inveja vai incorrer no da Ira? Praza aos céus que não porque
te quero digno do Paraíso e pecado mortal é coisa séria! Para piorar a situação
Ângela, a mulher de Jorge, gosta mais de MINHA blanquette! Disto não sou
responsável embora seja realmente muito melhor.
Sei
que a esta altura algum leitor, que ainda gentilmente tenha ânimo para ler esta
enxurrada de crônicas que produzo, vai achar que estou incorrendo no pecado do
Orgulho. Longe disto. Sou até humilde, mas é fato comprovado que MINHA
blanquette é muitíssimo melhor. Para ser justa, considerando o elenco de
Pecados Capitais, é possível ela faça com que os comensais incorram em pelo
menos três outros deles: a gula, a luxúria e a preguiça. No primeiro ao comerem
em demasia não conseguindo parar depois que a fome foi saciada; no segundo ao
sentirem um prazer proibido que vai muito além do gustativo; e no terceiro
depois derrubados numa confortável poltrona após sua ingestão.
Não
espero e nem exijo uma retratação de Jorge Pontual. Sou magnânima e compreendo perfeitamente
sua explosão que poderia ter sido minha caso minha blanquette fosse inferior à
sua. Tenho a certeza que mesmo sendo
infinitamente melhor, continuaremos amigos até o fim de nossos dias.
Provavelmente até o fim dos meus porque sou muitíssimo mais velha. Mas até lá,
e pela eternidade, lego aos meus descendentes como uma herança a certeza de que
MINHA blanquette é de fato melhor do que a dele. Deixo de registrar aqui a
resposta que seria digna de sua imprecação, título desta, porque não fica bem uma
senhora de minha idade, aos gritos, como ele o fez, proferir: Patética é a...
2006
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