A
história se passa por volta de 1941. Para alguns dos leitores, acredito, esta é
uma data jurássica. Não para a hoje provecta senhora que, naqueles idos, recém
havia completado onze anos. Na passagem dos dez para estes onze anos uma
monumental mudança havia ocorrido: a timidez que a atormentara desde que se
entendia por gente escafedeu-se graças ao tratamento de choque empreendido
pelos extraordinários educadores do colégio americano para o qual a haviam
transferido os pais na esperança de vê-la curada.
Era
um colégio “moderno” onde atividades extraclasses proliferavam. Entre estas um
núcleo de teatro orientado por nada menos que Jaime Costa (ator cômico famoso
da época) possibilitou que ela incorporasse a personagem de Strombolli (algoz
de Pinóquio) escondida atrás de monumental barriga e enorme barba que lhe
escondia o rosto. O anonimato, já que irreconhecível, permitiu que ela
conseguisse mover-se no palco sem medo. Iniciava-se uma carreira. É verdade que
só poderia aceitar papeis em que o disfarce tornasse impossível seu
reconhecimento.
O
início da tragédia se deu quando Madame (professora de francês) resolveu
encenar uma adaptação infantil de Cyrano de Bergerac. A menina exultou. Já
naquela idade ela falava francês. Quer dizer, a pronúncia era impecável. As
palavras e o sentido nem sempre. Havia aprendido alguma coisa de muito ouvir
pais e tios que, sabe-se lá por que causas, vez por outra se expressavam neste
idioma não sendo franceses. Sobretudo quando não queriam se fazer entender
pelas crianças. Isto fez com que estas (as crianças) se empenhassem em adquirir
proficiência nesta língua para ficar por dentro de histórias escabrosas como a
da gravidez da filha da prima Leontina antes do casamento.
Mas
voltando ao Cyrano: o personagem além de homem tinha aquele enorme nariz e uma
cabeleira. Perfeito para esconder físico e revelar talento. Ainda por cima
Roxane seria interpretada por sua melhor amiga – apelidada 1300 por que as
iniciais de seu nome completo eram MCCC.
Tinha certeza que levaria o público às lágrimas quando da morte do
herói. Empenhou-se furiosamente nos ensaios (para os quais exigia a
caracterização).
E
eis que um belo dia percebe que não mais precisava do disfarce. Maravilhada
consegue encarar a todos com o rosto limpo, falando alto, fazendo-se notar. Era
o paraíso! E este falar alto fazendo-se notar começou a ser uma tônica. De
excessivamente tímida passou a excessivamente se mostradora. Até hoje não
entende por que este desvio também não sofreu correção por parte dos
professores. Vai ver eles se maravilharam com a transmutação que havia
ocorrido.
Exigiu
seu nome no programa da peça em letras garrafais. Não foi atendida em toda
extensão de seu desejo, mas conseguiu um destaque razoável. Isto provocou certo
mal estar em Mil e Trezentos que queria ser objeto de igual destaque.
Condescendente ela explicou à amiga que seu papel (dela) era secundário o que
provocou recrudescimento do mal estar que se transformou em total beligerância
para desespero de Jaime Costa e de Madame. Ela estava pouco se importando. Com
Roxane ou sem Roxane, Cyrano iria brilhar na constelação dos grandes atores. E
eis que chega o grande dia e o sucesso se revela.
Mil
e Trezentos imbuída de um profissionalismo espantoso serviu perfeitamente de
escada para um impecável Cyrano que, a bem da verdade, quase arranca as
lágrimas que prometera conseguir. O sucesso foi tanto que Madame entusiasmada
resolve promover um outro dia de espetáculo para o qual seria convidado o
Cônsul francês, seu amigo. Era a glória! Interpretar Cyrano para um diplomata
francês; era a garantia de um sucesso internacional e quem sabe a possibilidade
de uma viagem à França para apresentar a obra. O fato de aquele País estar
ocupado por tropas alemãs em nada prejudicava o sonho que, como todo sonho que
se preza, se revestia de aspectos impossíveis. Deixaria a família e iria de
navio e passaria a integrar o elenco da Comèdie.
Antes
da apresentação Madame reúne o elenco e explica que certamente após o
espetáculo o Cônsul as iria cumprimentar e seria conveniente que se empenhassem
em responder em francês. Foi ai que a coisa pegou. Ela tinha apenas dois dias
para encontrar uma frase de efeito que deixasse o Cônsul embasbacado, o que
terminou por conseguir como veremos adiante. Corre à biblioteca do Pai e de lá
tira vários volumes em francês que febrilmente consulta. Procurava diálogos em
que houvesse uma pequena frase terminada por um ponto de exclamação. E eis que acha um
tesouro: um personagem sobre o qual não tinha qualquer referência diz uma frase
curta e exclamativa que provoca nos interlocutores um Ohhh que ela,
desgraçadamente, atribuiu a uma inegável admiração diante da verve e do
inusitado. É esta, decide ela!
O
sucesso da apresentação se repete e o Cônsul sorridente se aproxima para
felicitar o elenco. Dirige-se a ela, ainda caracterizada, e diz algo que ela
não julga necessário entender já que fosse o que fosse teria como resposta a
frase de efeito. No silêncio que se fez, com sua irrepreensível pronuncia, ela
solta a declaração que julga digna de um Cyrano: ta gueule, connard!!*
*Numa
tradução livre: fecha a matraca, babaca!
2010
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