sábado, dezembro 07, 2013

EXTRAORDINÁRIA LEMBRANÇA DO PRIMÁRIO

No científico do Andrews – pasmem – estudávamos filosofia. Daí me vem a máxima do mestre – David Perez - cuja verdade venho atestando vida afora: tudo tem a ver com tudo. A constatação desta verdade indiscutível se fez presente no surgir desta crônica. Desemprego X Reunião de Condomínio me proporcionaram momentos de real espanto.

Estas – as reuniões de condomínio - sempre me causaram urticária nervosa. Vai daí que covardemente eu não as frequentava escudada em razão pra lá de razoável: as constantes viagens a que me obrigavam as consultorias que sucederam à aposentadoria coincidiam com as ditas. Mas eis que não viajo mais! Resignada marcho para a garagem do Bloco B, às 20:30, hora da segunda convocação já que, segundo o porteiro, ninguém atende à primeira que se dá meia hora antes.

Percebo que minha presença causa certa estranheza, evidenciada por meu aflito vizinho de banco ao declarar: “se a senhora veio é porque tem algum assunto grave incluído nos Assuntos Gerais”. Asseguro que não tenho a menor ideia do que possa estar incluído neste item, que nem sabia existente. Uma vizinha do Bloco A me faz sinais desesperados para eu vá sentar-me a seu lado. Obedeço mais no intuito de saber o porquê desta insistência já que mal a conheço. O mistério se desfaz no cochicho: “a senhora não deve sentar-se perto dos moradores do Bloco B! Eles nos odeiam!” Embasbacada e sentindo-me desagradavelmente odiada, percorro com os olhos os bancos de Blocos B. Meu Deus, aquele rapaz com um ar tão saudável e pai do Ricardinho que me atropela uma vez por semana com seu velocípede, me odeia! E aquela gorducha e simpática senhora que me sorri? Fingida? Hipócrita?

Busco a razão do ódio: “Por quê?!” E vem a explicação da maior lógica: “Nós temos três quartos e vista para rua! Eles não perdoam.” Não tenho tempo de avaliar a gravidade das diferenças causadoras da cisão Nós X Eles porque se inicia a batalha entre as duas facções. Um horror a derrocada B! Impotentes diante do poder econômico perdem vergonhosamente causas importantíssimas. E é assim que as garrafas passarão a ser recolhidas no máximo até 11 horas, os carros de visitantes não poderão mais entrar e será colocado um telefone na portaria, aumentando o valor do condomínio, telefone este que só poderá ser usado para receber chamadas. Ninguém, ninguém mesmo poderá utilizá-lo para falar a não ser em situações de grandes e graves emergências cuja natureza vale mais uma boa hora de discussões sem que se chegue a uma definição precisa de quais seriam. Decide-se que na próxima reunião será apresentada uma lista destas, a ser elaborada pelo síndico e por dois representantes de cada bloco. Apavorada declino do convite de ser um destes representantes. A realidade já anda bastante grave. Nos tempos que correm seria um tormento por minha imaginação a serviço de emergências hipotéticas.

 Olhares furibundos dos A acompanham algumas de minhas declarações de voto à corrente B. Pronto! Agora sou odiada pelos meus pares também. E como continuo a ter três quartos e vista para rua permaneço objeto de ódio B. Enfim, uma unanimidade! Mas eis que chegamos aos Assuntos Gerais. Ao que parece o Antônio é quase analfabeto e isto está causando problemas seriíssimos na entrega de correspondência: melhor mandar embora! Frases cruzam-se agressivas. Uma maioria do Bloco B é contra. Chego a uma conclusão importantíssima (não sei como vivi até esta idade ignorando esta máxima): pessoas que moram em dois quartos e sem vista para a rua são bem mais humanas. Calculo rapidamente a quantidade de votos prováveis pró e contra. Cruzes! Vai dar empate. Fora o absurdo de causar desemprego nos tempos que correm, fato inegável me faz decidir: não posso viver sem Antônio. Sem o sorriso simpático jamais conseguirei resolver problemas extremamente graves.

Antônio é meu anjo da guarda quando as tomadas param de funcionar, assim de estalo e o ventilador de teto inexplicavelmente passa a fazer ruídos estranhíssimos e que mais sei eu. Isto sem contar as deliciosas histórias de sua infância lá pelo interior da Paraíba, com que ele me delicia tomando o merecido cafezinho depois do pronto socorro. Não! decido! Antônio não pode sumir de minha vida! A esta altura a única perda suportável é a minha própria. E desta, felizmente, não vou ter notícia. Proponho uma solução: posso dar aulas ao Antônio. Incompreensão e espanto marcam as expressões A e B que em silêncio me observam. Verbalizando o espanto geral o senhor de imensos bigodes (bloco A) numa voz severa e firme, me interpela: Vai me dizer que a senhora, nesta idade, ainda se lembra do que aprendeu no primário?

2005

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