O “ficar” ainda não existia. Mas hoje me dou conta que
naquele já tão distante 1948 havíamos criado precursor deste processo, sem
saber, sem nomear. O plural deve-se aos jovens que desde o nascimento tornaram-se
uma entidade indestrutível, inseparável: os Amaral, os Bittencourt, os
Delamare, os Freire, os Durão, o Brito Cavalcanti, os Darke de Matos, os Costa
Pinto e nós, os primos Miguel Pereira, éramos O Grupo. A este se agregava,
destoando um pouco, o “Pequeno Príncipe”, como apelidávamos Jean Noël: meio
francês e afilhado de Ginette e Alphonse, donos do Ermitage, o único hotel existente na
ainda não cidade.
Tínhamos,
nós sitiantes de carteirinha, o maior desprezo pelos “veranistas”
frequentadores do hotel que, desde alguns anos, haviam começado a surgir
naquelas paragens. Crescemos juntos e juntos passávamos uma grande parte do
ano: as grandes férias, as férias de julho, feriados e fins de semana. Como não
podia deixar de ser, quando atingimos a adolescência começaram os namoros
intra-grupo e, como todos os namoros naquela idade, começavam e logo acabavam.
Sobretudo porque só valiam para as férias. No Rio pouco nos víamos. Com uma
quantidade finita de candidatos o jeito foi estabelecer um rodízio já que “veranistas”
não eram admitidos. O troca-troca nunca deu problema. Uma coisa era sagrada: no
carnaval todos tinham que estar namorando.
E eis que o carnaval de 48 se anunciou trágico para mim. Um
gravíssimo incidente havia ocorrido: o cavalo de Domingos Olimpio (meu namorado
no momento), mordeu meu cavalo por pura maldade e, mais grave, ele nada fez
para impedir a até se vangloriou da agressão desmedida daquele pangaré idiota e
desbotado. A ofensa era grave demais para manter o namoro que se desfez com
palavras extremamente desagradáveis de parte a parte. Resultado: eu estava no
mato sem cachorro mesmo porque Domingos numa atitude vergonhosamente desleal
começou a namorar fora do grupo! Uma menina (linda) que conhecíamos, mas não
era sitiante. Também não era hóspede de hotel. A família tinha uma casa de veraneio. Ou seja, um meio
termo aceitável. E foi assim que eu entrei bem!
No encontro na estação para esperar o trem das onze, naquele
sábado de carnaval, as meninas me rodeavam com palavras de conforto: “vai ver o
Jean chega no trem. Ele não está namorando ninguém”. Fiquei indignada: “este
nem vestido de ouro!”. Minha rejeição dava-se pelo fato de que desde muito
pequenos eu morria de inveja dele, dono que era de um pônei que o padrinho lhe
havia dado aos 6 anos e, ainda por cima, volta e meia ia à França! Imperdoável.
Mas eis que o trem chega e com ele, Jean, que no último ano da Escola da
Aeronáutica tinha um período de férias bem menor que o nosso. No Bar do Nagib,
nas mesas que se formaram depois da chegada no trem para acertar os detalhes da
ida ao baile daquela noite, Jean foi informado de minha disponibilidade. Anos
depois fiquei sabendo que o comentário foi: “vou ter que fazer como o Domingos.
Ela, de jeito nenhum.”
Às oito da noite encontramo-nos na estação para formar a
caravana do baile. Ai mais uma humilhação. Cada casal ocupava uma charrete. Eu
me recusei a ir sozinha em uma e optei pelo cavalo o que também ocorreu com
Jean. A caravana partiu e, por um tempo, tentamos cavalgar separados. Mas Dream
Boy, meu cavalo, tinha uma estranha mania: recusava-se a andar desacompanhado
caso houvesse outro cavalo por perto e estava me dando o maior trabalho para
contê-lo. Sobretudo porque sem botas, chicote ou esporas era difícil dominá-lo
e eu estava vestida com um sarong! O resultado é que lá pela altura do Buraco
dos Burros a havaiana e o pirata passaram a cavalgar juntos, inicialmente em
silêncio. De repente Jean começa a rir e diz: isto está ridículo. Ri também e começamos a conversar. Contei a ele
a falseta de Domingos e de seu pangaré e fiquei grata com o comentário de assim não dá mesmo. E me veio a grande
idéia: “e se nós fingíssemos. Só durante o carnaval?” Ele, que nunca foi de
muitas palavras apenas disse bacana esta
idéia! Entramos de mãos dadas no salão para espanto de todos. E eu tive o
enorme prazer de ver nos olhos de Domingos a incredulidade e até uma certa
raiva.
Divertimo-nos muito durante o carnaval com a sensação de
estarmos enganando a todos. Exageramos em ternuras e afagos, num desempenho
teatral impecável. Na quarta feira e cinzas, acordei mal. Não fui à estação
para a espera do trem das onze. Alguma coisa de muito desagradável estava
acontecendo. Avó, tios e pais
afligiram-se: o que é que você tem?
Eu só soube dizer: me deixem em paz e
me tranquei no quarto. Como sempre a família respeitou, mas do quarto eu
escutava as frases especulativas e preocupadas.
De repente uma batida na porta e a voz maviosa de um dos tios: Jean está aqui querendo falar com você.
A vida voltou a ser bela. Ele ali estava e ficou por mais de
18 anos e três maravilhosos filhos. No dia em que nos casamos, um ano e meio
depois, ao entrar na igreja ao som da marcha nupcial nos braços de papai, cada
ponta de banco estava ocupada por um da turma que dizia para espanto dos
convidados: nem vestido de ouro, heim?!
Aquele carnaval certamente aconteceu algo de diferente.
Domingos também se casou com a bela meio veranista e ficaram casados até sua
morte poucos anos atrás. Minha prima casou-se com um Costa Pinto. Só hoje me
dou conta de que com o carnaval de 48 terminou a mais bela, divertida e
maravilhosa adolescência que alguém pode ter.
2009
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