sábado, dezembro 28, 2013

O ÚLTIMO CARNAVAL DA ADOLESCÊNCIA





O “ficar” ainda não existia. Mas hoje me dou conta que naquele já tão distante 1948 havíamos criado precursor deste processo, sem saber, sem nomear. O plural deve-se aos jovens que desde o nascimento tornaram-se uma entidade indestrutível, inseparável: os Amaral, os Bittencourt, os Delamare, os Freire, os Durão, o Brito Cavalcanti, os Darke de Matos, os Costa Pinto e nós, os primos Miguel Pereira, éramos O Grupo. A este se agregava, destoando um pouco, o “Pequeno Príncipe”, como apelidávamos Jean Noël: meio francês e afilhado de Ginette e Alphonse,  donos do Ermitage, o único hotel existente na ainda não cidade. 


          Tínhamos, nós sitiantes de carteirinha, o maior desprezo pelos “veranistas” frequentadores do hotel que, desde alguns anos, haviam começado a surgir naquelas paragens. Crescemos juntos e juntos passávamos uma grande parte do ano: as grandes férias, as férias de julho, feriados e fins de semana. Como não podia deixar de ser, quando atingimos a adolescência começaram os namoros intra-grupo e, como todos os namoros naquela idade, começavam e logo acabavam. Sobretudo porque só valiam para as férias. No Rio pouco nos víamos. Com uma quantidade finita de candidatos o jeito foi estabelecer um rodízio já que “veranistas” não eram admitidos. O troca-troca nunca deu problema. Uma coisa era sagrada: no carnaval todos tinham que estar namorando.

E eis que o carnaval de 48 se anunciou trágico para mim. Um gravíssimo incidente havia ocorrido: o cavalo de Domingos Olimpio (meu namorado no momento), mordeu meu cavalo por pura maldade e, mais grave, ele nada fez para impedir a até se vangloriou da agressão desmedida daquele pangaré idiota e desbotado. A ofensa era grave demais para manter o namoro que se desfez com palavras extremamente desagradáveis de parte a parte. Resultado: eu estava no mato sem cachorro mesmo porque Domingos numa atitude vergonhosamente desleal começou a namorar fora do grupo! Uma menina (linda) que conhecíamos, mas não era sitiante. Também não era hóspede de hotel. A família  tinha uma casa de veraneio. Ou seja, um meio termo aceitável. E foi assim que eu entrei bem!

No encontro na estação para esperar o trem das onze, naquele sábado de carnaval, as meninas me rodeavam com palavras de conforto: “vai ver o Jean chega no trem. Ele não está namorando ninguém”. Fiquei indignada: “este nem vestido de ouro!”. Minha rejeição dava-se pelo fato de que desde muito pequenos eu morria de inveja dele, dono que era de um pônei que o padrinho lhe havia dado aos 6 anos e, ainda por cima, volta e meia ia à França! Imperdoável. Mas eis que o trem chega e com ele, Jean, que no último ano da Escola da Aeronáutica tinha um período de férias bem menor que o nosso. No Bar do Nagib, nas mesas que se formaram depois da chegada no trem para acertar os detalhes da ida ao baile daquela noite, Jean foi informado de minha disponibilidade. Anos depois fiquei sabendo que o comentário foi: “vou ter que fazer como o Domingos. Ela, de jeito nenhum.”

Às oito da noite encontramo-nos na estação para formar a caravana do baile. Ai mais uma humilhação. Cada casal ocupava uma charrete. Eu me recusei a ir sozinha em uma e optei pelo cavalo o que também ocorreu com Jean. A caravana partiu e, por um tempo, tentamos cavalgar separados. Mas Dream Boy, meu cavalo, tinha uma estranha mania: recusava-se a andar desacompanhado caso houvesse outro cavalo por perto e estava me dando o maior trabalho para contê-lo. Sobretudo porque sem botas, chicote ou esporas era difícil dominá-lo e eu estava vestida com um sarong! O resultado é que lá pela altura do Buraco dos Burros a havaiana e o pirata passaram a cavalgar juntos, inicialmente em silêncio. De repente Jean começa a rir e diz: isto está ridículo. Ri também e começamos a conversar. Contei a ele a falseta de Domingos e de seu pangaré e fiquei grata com o comentário de assim não dá mesmo. E me veio a grande idéia: “e se nós fingíssemos. Só durante o carnaval?” Ele, que nunca foi de muitas palavras apenas disse bacana esta idéia! Entramos de mãos dadas no salão para espanto de todos. E eu tive o enorme prazer de ver nos olhos de Domingos a incredulidade e até uma certa raiva.  

Divertimo-nos muito durante o carnaval com a sensação de estarmos enganando a todos. Exageramos em ternuras e afagos, num desempenho teatral impecável. Na quarta feira e cinzas, acordei mal. Não fui à estação para a espera do trem das onze. Alguma coisa de muito desagradável estava acontecendo.  Avó, tios e pais afligiram-se: o que é que você tem? Eu só soube dizer: me deixem em paz e me tranquei no quarto. Como sempre a família respeitou, mas do quarto eu escutava as frases especulativas e preocupadas.  De repente uma batida na porta e a voz maviosa de um dos tios: Jean está aqui querendo falar com você.

A vida voltou a ser bela. Ele ali estava e ficou por mais de 18 anos e três maravilhosos filhos. No dia em que nos casamos, um ano e meio depois, ao entrar na igreja ao som da marcha nupcial nos braços de papai, cada ponta de banco estava ocupada por um da turma que dizia para espanto dos convidados: nem vestido de ouro, heim?!

Aquele carnaval certamente aconteceu algo de diferente. Domingos também se casou com a bela meio veranista e ficaram casados até sua morte poucos anos atrás. Minha prima casou-se com um Costa Pinto. Só hoje me dou conta de que com o carnaval de 48 terminou a mais bela, divertida e maravilhosa adolescência que alguém pode ter.

             2009

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