quinta-feira, dezembro 05, 2013

SENSIBLJERIE

      E eu nem sabia que havia uma denominação própria para o fenômeno. Na verdade nem mesmo sabia tratar-se de um fenômeno. Do fato comecei a percebê-lo de uns anos para cá e, sem que desse muita importância a isto, percebi também que a freqüência de sua ocorrência vinha aumentando. Afinal as coisas evoluem muito e quem já viveu tanto quanto eu não mais se espanta com novidades. Mas vamos ao fenômeno. Não o Ronaldo, é claro. Depois do advento de Robinho, que se anuncia como sucessor das auras de Pelé, Maradona e Garrincha, este “fenômeno” já não é tão fenomenal assim.

      O fenômeno de que falo é catalogado por Jurandir Freire Costa e tem um nome: Sensiblerie. Pois é: há tempos venho dele sendo vítima sem saber que tinha nome, definição e descrição. Parece que surgiu lá por volta do século XIX. Mas naquele século era ligado ao lado sentimental. Nos tempos de hoje transformou-se em uma hipersensibilidade que acomete as pessoas no que toca a aspectos corporais lá delas. À simples menção de assunto que possa ligar-se a isto se estabelece uma competição feroz entre os circunstantes, na qual sempre saio como derrotada. Sou sempre “mais” ou “menos” que os presentes que além de me evidenciarem isto, cruelmente demonstram as razões que me colocam neste patamar desfavorável. E estas razões sempre atestam minha exclusiva culpa.

      Nunca imaginei que aos setenta e cinco anos me veria execrada por não exibir a massa muscular adequada. Até que eu deveria ter uma. Montava, jogava tênis, nadava e outros que tais. Mas a tal massa aparentemente não se criou porque, segundo me informam os que a tem, deve ser desenvolvida com método, ou seja, com freqüência, duração e técnica cientificamente calculadas. Isto de fato eu não fiz, confesso. Todas estas atividades foram realizadas por puro prazer nos momentos em que me dava na telha. Ao que parece não pode ser assim. E, o que é pior, parei de fazer. Isto não pode. Não pode mesmo. É mortal.

      Segundo os entendidos é literalmente mortal: morre-se por não fazê-las. A afirmação irrefutável que mesmo não fazendo, ainda estou viva, de nada adianta. Revelam-me que por me constituir numa exceção, se cheguei a esta provecta idade fazendo tudo errado, certamente poderia viver até aos cento e vinte (que me garantem, não atingirei) se me dedicasse “comme il faut”.  E embora não consiga imaginar a que tipo de atividade me dedicaria dos, por exemplo, cem aos cento e vinte, cercada de filhos de cem e de netas de oitenta, e possíveis bisnetos quarentões pais de tataranetos adolescentes, o argumento é realmente imbatível, sobretudo por ser de impossível comprovação.

      Mas o que tem me tornado vítima neste fenômeno é a competição. Ela se estabelece sempre quando eu, inadvertidamente, faço alguma inocente observação como outro dia ocorreu: hoje andei pela lagoa até a Curva do Calombo. Imediatamente um dos presentes me informa ter andando o dobro, outro o triplo e outro, me parece, ainda está andando. Belicoso alguém me encurrala: em quanto tempo?  Não tendo a menor idéia do tempo decorrido do que para mim era um passeio, chuto: uma hora, acho. O comentário vem com uma enorme carga de desprezo: você não andou. Arrastou-se. Faço este percurso em 10 minutos. Tento justificar: É que eu parei para... Gritos escandalizados interrompem: Parou! Ela parou! Imagina! Que loucura! Não pode parar! Desisto de completar a frase: vai ver não é mais aceitável ver o pôr-do-sol e eu nem sabia.

      No silêncio uma voz maldosa: vocês não repararam bem no que ela disse. A mim parecia que não faziam outra coisa desde minha infeliz declaração. Mas a voz explica: ela disse que hoje andou na lagoa. Sinal que não o faz todos os dias. Todos olham para mim horrorizados É verdade? alguém pergunta com voz grave e carregada de censura. Por alguns segundos penso em mentir descaradamente, mas humilhada acabo por admitir: É, sim... Diante desta confissão infame me deixam de lado, mas o assunto não pára. Começam a comparar os respectivos tempos e distâncias.

      A discussão acalora-se, cada um  buscando a superação do outro. Depois descamba para outras paragens, sempre ligadas ao físico: quem come menos gordura; a quanto tempo se deixou de fumar (porque nenhum deles fuma mas todos fumaram um dia); qual a dose de vitamina C ingerida diariamente; como andam os radicais livres de cada um; e que mais sei eu. Fico sabendo que é necessário para sobreviver, comer seis verduras e quatro frutas diferentes (ou vive-versa, não sei bem), diariamente. Meu Deus! Penso no peso do carrinho que vou ter que puxar ladeira acima vindo da Cobal. Para não repetir todos os dias o mesmo cardápio, a cada ida vou ter que providenciar, no mínimo, 18 verduras e 12 frutas diferentes. E também sardinhas. Parece que são indispensáveis para que se perca ou se ganhe alguma coisa que não consegui registrar. Alegro-me. Agora posso participar da conversa. Afinal eu como sardinhas. Perguntam-me como as preparo... e o mundo cai sobre meus ombros. Fritas? Você está louca?

      A partir daí sou totalmente alijada da conversa e é evidente que me consideram como pessoa altamente problemática emocionalmente e que vem paulatinamente se destruindo física e moralmente. 

2005

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