E eu nem sabia que havia uma
denominação própria para o fenômeno. Na verdade nem mesmo sabia tratar-se de um
fenômeno. Do fato comecei a percebê-lo de uns anos para cá e, sem que desse
muita importância a isto, percebi também que a freqüência de sua ocorrência
vinha aumentando. Afinal as coisas evoluem muito e quem já viveu tanto quanto
eu não mais se espanta com novidades. Mas vamos ao fenômeno. Não o Ronaldo, é
claro. Depois do advento de Robinho, que se anuncia como sucessor das auras de
Pelé, Maradona e Garrincha, este “fenômeno” já não é tão fenomenal assim.
O fenômeno de que falo é
catalogado por Jurandir Freire Costa e tem um nome: Sensiblerie. Pois é: há tempos venho dele sendo vítima sem saber
que tinha nome, definição e descrição. Parece que surgiu lá por volta do século
XIX. Mas naquele século era ligado ao lado sentimental. Nos tempos de hoje
transformou-se em uma hipersensibilidade que acomete as pessoas no que toca a
aspectos corporais lá delas. À simples menção de assunto que possa ligar-se a
isto se estabelece uma competição feroz entre os circunstantes, na qual sempre
saio como derrotada. Sou sempre “mais” ou “menos” que os presentes que além de
me evidenciarem isto, cruelmente demonstram as razões que me colocam neste
patamar desfavorável. E estas razões sempre atestam minha exclusiva culpa.
Nunca imaginei que aos setenta
e cinco anos me veria execrada por não exibir a massa muscular adequada. Até
que eu deveria ter uma. Montava, jogava tênis, nadava e outros que tais. Mas a
tal massa aparentemente não se criou porque, segundo me informam os que a tem,
deve ser desenvolvida com método, ou seja, com freqüência, duração e técnica
cientificamente calculadas. Isto de fato eu não fiz, confesso. Todas estas
atividades foram realizadas por puro prazer nos momentos em que me dava na
telha. Ao que parece não pode ser assim. E, o que é pior, parei de fazer. Isto
não pode. Não pode mesmo. É mortal.
Segundo os entendidos é
literalmente mortal: morre-se por não fazê-las. A afirmação irrefutável que mesmo
não fazendo, ainda estou viva, de nada adianta. Revelam-me que por me
constituir numa exceção, se cheguei a esta provecta idade fazendo tudo errado,
certamente poderia viver até aos cento e vinte (que me garantem, não atingirei)
se me dedicasse “comme il faut”. E
embora não consiga imaginar a que tipo de atividade me dedicaria dos, por
exemplo, cem aos cento e vinte, cercada de filhos de cem e de netas de oitenta,
e possíveis bisnetos quarentões pais de tataranetos adolescentes, o argumento é
realmente imbatível, sobretudo por ser de impossível comprovação.
Mas o que tem me tornado
vítima neste fenômeno é a competição. Ela se estabelece sempre quando eu,
inadvertidamente, faço alguma inocente observação como outro dia ocorreu: hoje
andei pela lagoa até a Curva do Calombo. Imediatamente um dos presentes me
informa ter andando o dobro, outro o triplo e outro, me parece, ainda está
andando. Belicoso alguém me encurrala: em quanto tempo? Não tendo a menor idéia do tempo decorrido do
que para mim era um passeio, chuto: uma hora, acho. O comentário vem com uma
enorme carga de desprezo: você não andou. Arrastou-se. Faço este percurso em 10
minutos. Tento justificar: É que eu parei para... Gritos escandalizados
interrompem: Parou! Ela parou! Imagina! Que loucura! Não pode parar! Desisto de
completar a frase: vai ver não é mais aceitável ver o pôr-do-sol e eu nem
sabia.
No silêncio uma voz maldosa: vocês
não repararam bem no que ela disse. A mim parecia que não faziam outra coisa
desde minha infeliz declaração. Mas a voz explica: ela disse que hoje
andou na lagoa. Sinal que não o faz todos os dias. Todos olham para mim
horrorizados É verdade? alguém pergunta com voz grave e carregada de censura.
Por alguns segundos penso em mentir descaradamente, mas humilhada acabo por
admitir: É, sim... Diante desta confissão infame me deixam de lado, mas o
assunto não pára. Começam a comparar os respectivos tempos e distâncias.
A discussão acalora-se, cada
um buscando a superação do outro. Depois
descamba para outras paragens, sempre ligadas ao físico: quem come menos
gordura; a quanto tempo se deixou de fumar (porque nenhum deles fuma mas todos
fumaram um dia); qual a dose de vitamina C ingerida diariamente; como andam os
radicais livres de cada um; e que mais sei eu. Fico sabendo que é necessário
para sobreviver, comer seis verduras e quatro frutas diferentes (ou vive-versa,
não sei bem), diariamente. Meu Deus! Penso no peso do carrinho que vou ter que
puxar ladeira acima vindo da Cobal. Para não repetir todos os dias o mesmo
cardápio, a cada ida vou ter que providenciar, no mínimo, 18 verduras e 12
frutas diferentes. E também sardinhas. Parece que são indispensáveis para que
se perca ou se ganhe alguma coisa que não consegui registrar. Alegro-me. Agora
posso participar da conversa. Afinal eu como sardinhas. Perguntam-me como as
preparo... e o mundo cai sobre meus ombros. Fritas? Você está louca?
A partir daí sou totalmente
alijada da conversa e é evidente que me consideram como pessoa altamente
problemática emocionalmente e que vem paulatinamente se destruindo física e
moralmente.
2005
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