Um desconserto na coluna me fez
aportar na ABBR. Aparte o fato de que
colunas não deveriam se desconcertar nesta época impedindo toda e qualquer
providência relativa ao Natal, este me proporcionou momentos bem divertidos.
Estava eu sentada aguardando a chamada para consulta quando entra na sala uma
senhora que, creio, regulava comigo em idade, acompanhada de outra mais jovem.
Senta-se ela a meu lado no momento em que meu celular provoca um terremoto
dentro da bolsa. Aqui é necessário esclarecer que nunca deixo a campainha
ligada. Dela tenho um santo horror.
Era minha filha indignada pela
minha, segundo ela, desconsideração de não ter pedido que “me levasse ao
médico”. Outro esclarecimento: depois de certa idade somos “levados”. Procuro
falar baixo enquanto sinto o olhar da senhora insistente sobre mim. Desligo e de imediato escuto a voz que denota
espanto:
-
Como é que a senhora consegue se livrar “deles”?
-
Deles quem?
-
Filhos. Essa praga!
A outra
senhora, que sei agora filha, indignada corta:
-
Mamãe! Por favor!
E ela nem
se toca:
-
Não me deixam fazer nada. Absolutamente nada. E são
cinco! Tem sempre um escondido atrás da porta. Um terror. A senhora nem
imagina!
A filha
dirige-se a mim:
-
A senhora desculpe. “Ela” anda irritada com muita
dor nas costas.
-
Irritada é sua avó! E eu não sou “ela”. Estou aqui
presente de carne e osso!
Procuro melhorar o clima comungando com a irritação causada pela dor nas
costas.
- Imagina! Dor é mesmo muito irritante. Não se preocupe!
- A senhora sabe muito bem que não é isto! Ouvi sua conversa com sua filha. A senhora fugiu dela! Eu bem que ouvi. (voltando-se para
a filha) Você não ouviu? Ela fugiu da filha!
Era o que eu deveria ter feito!
-
Mamãe!!!
- Mamãe coisa nenhuma. Vai ver que ela vai até ao
cinema sozinha. (voltando-se para mim) A senhora vai ao cinema sozinha?
-
As vezes, quando...
- Viu! Viu só! (para
mim) Onde é mais que a senhora vai sozinha?
- Ora, eu...
- Vai ver vai ao supermercado. Ao cabeleireiro
também?
- Eu...
- Agora me diz, como é que a senhora faz para fugir?
- Eu moro sozinha!
Um silêncio se estabelece e o olhar dela é de puro espanto enquanto a
filha agora me parece bem irritada.
- E mais esta! E nunca deixou o gás ligado?
A filha
atalha belicosa:
- Morar sozinha nesta idade é um perigo! Seus filhos
não deviam deixar.
Agora a
irritação passa para mim:
-
Não me parece que eles tenham que “deixar”. Alem
disto...
-
(interrompendo) Tá vendo! Tá vendo só! Tá se
metendo até com a senhora. Doida! É doida varrida!
A intervenção da senhora consegue impedir minha agressividade e numa voz
que procuro doce tento melhorar as coisas:
-
Ela se preocupa com a senhora. É natural!
-
Se a senhora acha natural porque é que reclamou com
“sua filha”?
-
Na verdade ela estava só zangada por eu ter vindo
de táxi. E não de eu ter vindo sozinha. Recentemente vendi o carro...
E ela dá
um berro:
-
Carro!!! A senhora dirigia um carro!
Isto foi demais para ela que se fecha num silencio trágico. Trato de
ficar em silêncio também. Sabe-se lá em que isto vai dar se continuar. De
repente ela volta falar. Não está se dirigindo nem a mim, nem à filha. O olhar
está distante numa reflexão que adoça sua fisionomia. O nascer de um sorriso
traz a beleza camuflando as rugas:
-
Filhos... até que no Natal...
E ela dá umas pancadinhas carinhosas na mão da filha que olha pra ela
com carinho. E eu penso: devia ter vindo com minha filha!
2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário