terça-feira, dezembro 24, 2013

ATÉ QUE NO NATAL...

Um desconserto na coluna me fez aportar na ABBR.  Aparte o fato de que colunas não deveriam se desconcertar nesta época impedindo toda e qualquer providência relativa ao Natal, este me proporcionou momentos bem divertidos. Estava eu sentada aguardando a chamada para consulta quando entra na sala uma senhora que, creio, regulava comigo em idade, acompanhada de outra mais jovem. Senta-se ela a meu lado no momento em que meu celular provoca um terremoto dentro da bolsa. Aqui é necessário esclarecer que nunca deixo a campainha ligada. Dela tenho um santo horror.

Era minha filha indignada pela minha, segundo ela, desconsideração de não ter pedido que “me levasse ao médico”. Outro esclarecimento: depois de certa idade somos “levados”. Procuro falar baixo enquanto sinto o olhar da senhora insistente sobre mim.  Desligo e de imediato escuto a voz que denota espanto:

-          Como é que a senhora consegue se livrar “deles”?
-          Deles quem?
-          Filhos. Essa praga!

A outra senhora, que sei agora filha, indignada corta:

-          Mamãe! Por favor!

E ela nem se toca:

-          Não me deixam fazer nada. Absolutamente nada. E são cinco! Tem sempre um escondido atrás da porta. Um terror. A senhora nem imagina!

A filha dirige-se a mim:

-          A senhora desculpe. “Ela” anda irritada com muita dor nas costas.
-          Irritada é sua avó! E eu não sou “ela”. Estou aqui presente de carne e osso!

Procuro melhorar o clima comungando com a irritação causada pela dor nas costas.

-           Imagina! Dor é mesmo muito irritante.  Não se preocupe!
-        A senhora sabe muito bem que não é isto! Ouvi sua conversa com sua filha. A senhora fugiu dela! Eu bem que ouvi. (voltando-se para a filha) Você não ouviu? Ela fugiu da filha!  Era o que eu deveria ter feito!
-          Mamãe!!!
-       Mamãe coisa nenhuma. Vai ver que ela vai até ao cinema sozinha. (voltando-se para mim) A senhora vai ao cinema sozinha?
-          As vezes, quando...
-      Viu! Viu só! (para  mim) Onde é mais que a senhora vai sozinha?
-         Ora, eu...
-         Vai ver vai ao supermercado. Ao cabeleireiro também?
-         Eu...
-         Agora me diz, como é que a senhora faz para fugir?
-         Eu moro sozinha!

Um silêncio se estabelece e o olhar dela é de puro espanto enquanto a filha agora me parece bem irritada.

-       E mais esta! E nunca deixou o gás ligado?

A filha atalha belicosa:

-     Morar sozinha nesta idade é um perigo! Seus filhos não deviam deixar.

Agora a irritação passa para mim:

-          Não me parece que eles tenham que “deixar”. Alem disto...
-          (interrompendo) Tá vendo! Tá vendo só! Tá se metendo até com a senhora. Doida! É doida varrida!

A intervenção da senhora consegue impedir minha agressividade e numa voz que procuro doce tento melhorar as coisas:

-          Ela se preocupa com a senhora. É natural!
-          Se a senhora acha natural porque é que reclamou com “sua filha”?
-          Na verdade ela estava só zangada por eu ter vindo de táxi. E não de eu ter vindo sozinha. Recentemente vendi o carro...

E ela dá um berro:

-          Carro!!! A senhora dirigia um carro!

Isto foi demais para ela que se fecha num silencio trágico. Trato de ficar em silêncio também. Sabe-se lá em que isto vai dar se continuar. De repente ela volta falar. Não está se dirigindo nem a mim, nem à filha. O olhar está distante numa reflexão que adoça sua fisionomia. O nascer de um sorriso traz a beleza camuflando as rugas:

-          Filhos... até que no Natal...

E ela dá umas pancadinhas carinhosas na mão da filha que olha pra ela com carinho. E eu penso: devia ter vindo com minha filha!  

2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário