O título não é meu. Apodero-me dele sem
o menor escrúpulo. Afinal minha relação com Steven Pinker já vem de longe, lá
para os idos dos anos 80 quando
maravilhada li seu Language Learnability and Language Development. Sempre tive
encanto pelas palavras vendo nelas alguma coisa de mágico. E eis que agora meu
amigo Pinker no magistral Do Que É Feito o Pensamento me esclarece: são elas
uma janela para a natureza humana.
E me vem à memória palavras ditas por alguém que nem conheço
e que, de certa forma, tiveram um enorme impacto sobre mim mudando, e muito,
minha forma de ver as coisas. Corria o ano de 1973 e meu irmão – Joaquim Assis
- embrenhou-se no sertão de Pernambuco a procura de uma comunidade de pequenos
agricultores sobre a qual pudesse fazer um documentário. Encontrou-a, quase que
por acaso, nos arredores de Salgadinho, uma pequena cidade do agreste. Do
convívio de muitos dias com estes agricultores surgiu uma bela obra que veio a
ser premiada no então Festival JB: o filme O Xente, Pois Não.
Aqui um parêntese que nada tem a ver com as palavras de que
falo: documentário, para mim, é um dos gêneros mais difíceis da arte
cinematográfica. Raros aqueles que realmente “documentam” o fato como ele é. O
que mais se vê é um ponto de vista do diretor sobre o fato que nem sempre
traduz o que realmente existe. Impossível fazer-se um roteiro a priori porque o
fato, o assunto, o objeto “falam” por si no momento em que se filma e às vezes
de maneira inesperada e muito diversa daquela que se imaginou.
Mas voltando a Salgadinho: a comunidade, formada de pequenos
proprietários rurais havia se formado espontaneamente, sem interferência de
qualquer agente externo. Eram pobres, muito pobres, e perceberam que juntos
teriam alguma chance. Organizaram-se, lá a seu modo, num sistema hierárquico
democrático que fez brotar as lideranças administrativa, operacional e
espiritual exercidas no dia-a-dia com extraordinária competência. Foram dias e
dias de filmagem gerando um rico material. As limitações de tempo impediram que
fosse todo aproveitado e meu irmão desolado teve que eliminar momentos de
precioso significado. É um deles de que Pinker me fala agora.
Caia a tarde e o sol começa a baixar no horizonte. Sol
vermelho do agreste, enorme, queimando, sublinhando no horizonte o “pé de pau”,
uma das poucas árvores frondosas que por ali existia e cuja imagem gerou o
titulo do documentário surgido na boca de uma das moradoras quando exclama: O xente, pois não! Quando vejo a lindeza
deste pé de pau eu se alegro muito. Meu irmão encantou-se com a imagem que
daquela paisagem poderia resultar e pediu ao líder administrativo, que sempre o
acompanhava nas filmagens, para atrelar o único cavalo ao único arado para
fazer uma tomada contra o sol que caia. O rosto do sertanejo revelou espanto e
ele pergunta: e pru quê? Meu irmão
explica: vai ficar bonito. Indignado
o sertanejo responde: bonito pro’cê! Pra
eu é feio, muito feio, botá um cavalo cansado da lida do dia puxando o arado
sem serventia.
E desmoronou-se a estética frente à ética: a palavra “bonito”
inverteu o sentido tornando-se feia, muito feia. De uma feiúra desumana.
Aprendi muito com isto. Não se pode usar palavras impunemente. É surpreendente
a força que têm. O que dizemos descuidados pode, e muitas vezes isto ocorre,
ferir muito alguém. Quantas vezes desatentos atrelamos cavalos cansados a um
arado? Muitas, certamente. No mínimo usamos palavras condescendentes quando
descrevemos uma falta que cometemos utilizando outras acusadoras para mesma falta
cometida por outro. Bertram Russel demonstrou isto numa conjugação que poderia
ser cômica se não fosse muito, mas muito séria: “eu sou firme; você é
obstinado; ele é uma mula”. Quem nunca escorregou nesta casca de banana?
2008
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