Nunca
fui uma colecionadora. Mas hoje me dou conta de que, ao longo dos anos, fui
construindo uma monumental coleção de... dúvidas. Dúvidas de todo tipo, de
todos os matizes. Uma das mais sérias é desconfiar que o que acredito, o que
penso, só serve para mim! Pior é que diante desta inevitável terceira idade em
que me encontro provoco em algumas pessoas a sensação de que “sei” das coisas. Pedidos de conselhos e orientações me deixam
em cólicas. Sei lá eu?! E olha que eu era uma “sábia” em minha adolescência.
Sabia tudo e pontificava sobre qualquer assunto na tentativa de convencer o
mundo de que eu e só eu estava certa.
Vai
daí que involui sendo hoje presa de uma enorme insegurança fora do campo da
razão. Neste campo até que dá para fazer repasses. Mas fora dele nem mesmo o
“dois mais dois, quatro” – desconfio - pode ser correto e me invade um medo de
que, ao tentar convencer alguém, eu possa estar fazendo um desserviço, criando
uma confusão, transplantando a pessoa para um solo que não é dela, com
conseqüências danosas.
Toda
esta elucubração vem a respeito de uma história que há muitos anos me foi
contada por Lúcia Miguel Pereira, escritora e crítica literária, que estava, lá
pelo início dos anos 50, empenhada numa pesquisa sobre anônimas mulheres
brasileiras das quais antigos escritos davam notícia. É uma história divertida,
sem dúvida, mas é muito sério o seu significado.
Lembrei-me
deste relato uma noite destas quando, entre amigos, a discussão estava a todo
vapor sobre a possibilidade (e até o dever) que teríamos de convencer as
pessoas de certezas nossas. De fazê-las acreditar no que nós acreditávamos como
certo, verdadeiro. Eu, possuída pelo demônio de minhas dúvidas... tinha
dúvidas. O que sou me foi dado por todas as circunstâncias sociais, econômicas,
éticas e morais que foram determinadas por ter nascido nesta família, neste
País, nesta cultura, nesta etnia e sei lá eu mais o que. No momento em que
nasci, autoritariamente e sem ser consultada, fui recheada por uma carga de
“serás assim e pronto!”. Os meus valores, vindos daí, servirão para outros que
tiveram o nascimento presidido por outras fadas que não as minhas? Estas fadas
eram piores do que as minhas?
È
verdade que posso me livrar de alguma parte desta bagagem-herança, vida afora.
E até acrescentar coisa nova. Mas dificilmente será mudado o essencial vindo
daquilo que herdei. Tudo está impregnado, gravado a fogo. E as outras pessoas
têm lá o “gravado” delas, provavelmente muito diverso do meu. Mas vamos a
história que ilustra a força desta herança tão sólida e marcante do “eu” de
alguém:
Anchieta
viu com orgulho a transformação de uma índia – Ierecê - objeto mais que bem
sucedido de sua catequese. Era ela o exemplo vivo de que a fé pode ser
transmitida e que o toque divino pode acariciar os mais ímpios. Ierecê havia
assimilado tudo e, iluminada, pregava a seu povo com emoção e êxtase sobre as
maravilhas do Reino de Deus. E foi sem dor e sem dúvidas que renegou Tupã e sua
corte de deuses visíveis na natureza e no cosmos. O sol e a lua passaram a ser
apenas o sol a lua, sem qualquer significado divino. Uma criação de Deus,
apenas. Como braço direito do santo padre ela o acompanhava em suas andanças de
tribo em tribo, ajudando a aumentar o rebanho do Senhor. E ela o fazia com
entusiasmo. Era comovente a introspecção e a contrição que demonstrava ao
receber a Santa Hóstia que aceitava emocionada como o Corpo de Deus. Sua fé
maravilhava o padre e todos os membros da Companhia de Jesus que com Ierecê
tinham contato. Era o exemplo vivo de uma fé incondicional e libertadora das
amarras humanas. Um milagre. Um verdadeiro milagre.
Ierecê
já não era criança quando se converteu e fez batizar os filhos adultos que
tomaram nomes cristãos. Como ela o fizera transmudando-se em Maria Aparecida.
Uma aparecida no seio da floresta para espalhar a palavra de Deus. E foi como
Aparecida que envelheceu. E eis que chegou o dia, glorioso, em que iria prestar
contas ao Senhor na certeza de que lhe seriam abertas, com fanfarras dos anjos,
as portas do Paraíso. Anchieta, ao seu lado, ministrou os ritos finais. Ao
terminar, comovido, disse-lhe que não deveria ter medo e perguntou se havia
alguma coisa, qualquer coisa, que ela gostaria de fazer ou cumprir ainda neste
mundo. Um desejo humano, um último desejo ao qual como mortal tinha direito.
Um
sorriso radiante iluminou o rosto de Aparecida. Medo da morte nenhum, ao
contrário ela tinha certeza da divina e gloriosa acolhida de sua alma, mas um
último desejo havia, sim! Um desejo forte, imperioso, avassalador. Mas quem o
formulou foi Ierecê e não Aparecida. E foi assim que um estarrecido e
horrorizado Anchieta, a escutou falar num tom de alegre expectativa na
possibilidade de ser atendida: “Eu
quero, quero muito e pela última vez, comer um bracinho de criança!”
2005
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