“Quem sai aos seus não degenera” afirma o ditado para meu
conforto. Por que não deixa de ser um consolo e, sobretudo, uma justificativa
honrosa, o fato de minha condição de “serial clumsy” ter por origem a herança
materna. Verdade seja dita que eu fui muito além. No caso dela as ações desastrosas
tinham um caráter especializado circunscritas que eram ao uso da linguagem
escrita e falada. Tinham também um caráter recorrente como, por exemplo, o uso
de sinônimos que numa dada situação não caberia utilizar.
Alguns destes episódios ficaram nos anais da família: como o
do Seu Batalha, o empalhador de cadeiras que, até morrer, foi por ela
perseguido. Era este um profissional muito requisitado por todos e, bem pequena
eu adorava vê-lo trabalhando rodeado de cadeiras no quintal, com gestos
precisos e rápidos restaurando aquelas que perigosamente ameaçavam afundar com
o usuário. Pois bem, o pobre do Seu Batalha era invariavelmente chamado por Mamãe
de Seu Combate!
Outra troca extraordinária foi feita com uma amiga de minha
avó que deve ter sido um bebê não desejado pelos pais que, cruelmente, lhe
atribuíram o nome de Orinopla. Estava esta senhora em visita a minha avó quando
Mamãe, comigo a reboque, entra na sala e efusivamente dirige-se à infeliz com
esta extraordinária frase: mas que prazer
revê-la, D. Pinícula! Foi um Deus nos acuda. E D. Orinopla ofendeu-se para
todo sempre, jamais retornando à casa de minha avó.
E sabe-se lá porque o nome de Dr. Roiter, um médico muito
amigo da família, era sempre trocado por Topi, nome do cão basset da família.
Eu tinha ataques de riso incontroláveis quando Topi entrava indevidamente na
sala farejando o bolo do chá e era energicamente rechaçado com um severo: Passa, Roiter! Para a cozinha, já! Contavam os mais velhos que a primeira vez
que isto sucedeu Dr. Roiter ficou em estado de choque, espantadíssimo,
murmurando: O que foi que eu fiz?
Depois se acostumou e nem parecia perceber que o chá era oferecido ao Topi,
enquanto Roiter era ameaçado de castigo por algum mal feito.
Este mesmo Roiter foi objeto de um incidente, este por
escrito, dos mais absurdos: eu havia ido à casa de minha tia e madrinha onde
pequenos grupos haviam se formado na sala conversando sobre os mais variados
assuntos. Vagamente escutei que num grupo paralelo falava-se de uma missa
ligada ao nome Roiter. Ao regressar à casa de minha mãe lembrei-me disso e
sugeri que ela que telefonasse a minha tia para esclarecer que missa era aquela
ligada ao Roiter. Eis que, sem hesitar,
ela grita: Ai Meu Deus! Morreu o pai do
Roiter e eu nem fui ao enterro! Prudentemente esclareci que nada indicava ter
ocorrido tão triste fato.
Eu havia escutado apenas palavra missa ligada ao nome Roiter.
Melhor telefonar. Mas nada a demoveu. Imediatamente chamou Anísio, o copeiro
tatibitati e completamente louco (que me valerá outra crônica, tenho certeza),
ordenando que fosse aos Correios para passar um telegrama com o seguinte
enunciado: tardiamente informada falecimento
seu pai enviamos muito querido amigo nosso carinho por tão triste perda. E
passou o resto do dia se lamentando de não ter podido dar ao amigo o conforto
que gostaria. À noite aparece em visita Dr. Laclette, outro grande amigo da
família e também do Dr. Roiter. Minha mãe, com uma expressão adequada à triste
notícia, informa: Laclette, você sabia
que morreu o pai do Roiter? Espantadíssimo Dr. Laclette responde: Claro que sei!. Morreu há mais de dez anos.
Fomos ambos ao enterro! Ignoro como
foi interpretado por Dr. Roiter o “tardiamente informada”. Depois de dez anos e
tendo os dois se encontrado inúmeras vezes, não era muito justificável a
urgência de um telegrama nestes termos. Acredito que mesmo sendo objeto de
reprimendas destinadas a um cão deve ter dado tratos a bola para descobrir o
que havia motivado o envio. Depois foi esclarecido que se tratava de missa de
formatura de um filho do destinatário.
Mas o feito mais extraordinário foi motivado por meu irmão.
Universitários ainda, ele e um amigo haviam comparecido com as respectivas
namoradas à passeata dos estudantes em represália à morte de Edson Luis. Mamãe
estava trabalhando em seu escritório (que ficava no segundo andar da enorme
casa e tinha uma entrada por trás), quando adentram as duas namoradas em pânico
e anunciam que meu irmão e o amigo haviam sido presos. Uma dor de cabeça de meu
irmão já era motivo suficiente para que Mamãe entrasse em parafuso. Ser preso
era inimaginável! Ela desembesta pelo corredor demandando o escritório de papai
que ficava no extremo oposto da casa, seguida das duas moças e irrompe, em
cavalgada de guerra, falando sem parar: Tome
providência. Faça alguma coisa! Já! Imediatamente! e sem tomar fôlego exige
um imediato alerta aos dignitários de todos os poderes da República e também
eclesiásticos. Meu pai confuso e querendo entender o que havia acontecido
sai-se com um calma, meu bem!
Imediatamente ela fica calmíssima e pronunciando cada palavra como um petardo,
para horror das duas moças, declara com a frieza e altivez de um sorriso
desdenhoso: Calma porque não é seu filho!
Ao que meu pai responde: Boa hora
para me dizer uma coisa destas!
Não é,
portanto, sem razão que me tornei uma “serial clumsy”!
2007
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