Acordo dando bênçãos:
o calor se foi. Será que de vez? Começo a rotina do dia às avessas. Ouvi dizer
que isto evita Alzheimer. Mas arrumar a cama antes de tomar café é mortal.
Arrisco contrair a doença e parto para cozinha. Foi neste exato momento que os
tiros começaram. Pareciam vir da rua. Corro imprudente para janela e me dou
conta que estamos em guerra. A rua está tomada por viaturas policiais e por
dois tanques daqueles pretos do BOPE. Uma confusão dos diabos. Os operários da
infernal obra que nos enlouquece pelo barulho estão sendo dela retirados em
fila, escoltados, e são revistados. Fico pasma. Rebelaram-se eles? Trata-se de
uma revolução operária? Cada um, depois de liberado é enviado para o muro azul
da Produtora, do outro lado da rua, creio que para ficarem a salvo dos tiros
que agora são de vários tipos: metralhadora, pistola e granadas! Não dá pra
perceber de onde vêm, nem para onde vão. Talvez por isto as pessoas se protejam
de um lado e de outro dos carros estacionados criando uma enorme probabilidade
de que um dos lados seja o atingido.
O gato Pandareco,
mais prudente do que eu, esconde-se em baixo da coberta da cama: sai daí,
Pandareco! Deixa de ser bobo. Bala atravessa pano. O telefone toca. Minha
filha: está ouvindo? Respondo: estou vendo! É aqui. E faço a
reportagem que também se dá lá em baixo na quantidade de carros de emissoras de
TV que se misturam às viaturas policiais provocando um engarrafamento nunca
visto. De um taxi dois policiais retiram, aos cachações, um homem que parece ser
o motorista. O homem começa a sangrar no rosto. Absurdamente penso: melhor
passar Mertiolate, esta rua está imunda! O homem é algemado e deitado no chão
enquanto outro que estava próximo ao carro é interrogado por policiais. Ele
gesticula muito e aponta para o deitado no chão. Só à noite, no noticiário vim
a saber que o motorista era este. O outro era o bandido que havia tentado lhe
roubar o taxi para fugir.
Mais tiros e
policiais correm em todas as direções apontando armas. Os passantes que se
escondiam começam a brincar de quatro cantos trocando entre si seus ilógicos
esconderijos. Mais viaturas chegam e fecham o acesso da Lagoa para a Rua
Pinheiro Guimarães. Os motoristas dos carros represados saltam e formam uma
pequena multidão na esquina de Macedo Sobrinho. A cada saraivada de balas
começam também a brincar de quatro cantos se protegendo em esconderijos
disparatados. Mas, aparentemente, os tiros não se dirigem para a rua. Os
policiais apontam as armas a torto e a direito, mas não atiram. Portanto as
balas devem vir dos bandidos.
Absurdamente um
moto-boy sobe a ladeira driblando os carros para entregar uma pizza!!! Quem é
que come pizza esta hora da manhã, gente?! Ninguém lhe dá a menor atenção. Um
policial levanta a cabeça e dá comigo na janela. O grito vem indignado: sai
daí, Dona! Obedeço sem discutir e passo a olhar pela fresta da veneziana
que prontamente fechei. Ficou mais complicado agora porque não dá para ver o
fim da rua, fronteira com a mata. O ensangüentado é colocado na mala de uma viatura.
Novamente absurda me preocupo: a mala deve estar mais suja do que a rua, Vai
infeccionar e vai ficar um calor dos infernos.
Gritos ocorrem. Não
resisto e abro um pouquinho a veneziana. É uma confusão na fila dos operários
que estão sendo revistado. Uma quantidade enorme de policiais cerca um deles.
Um círculo de cinegrafistas e repórteres se forma em volta. E lá vem cachação.
Mas este não sangra. Algemado ele é escoltado ladeira a baixo e colocado na
mala de outra viatura. Pelo noticiário, à noite, fiquei sabendo que era um
bandido que, para fugir, havia se disfarçado de operário.
Os rádios de todas as
viaturas falam ao mesmo tempo formando uma cacofonia impedindo que se percebam
as palavras. Ou então é código mesmo. Outro policial grita comigo: fecha
esta janela! Desta vez não mereço o “Dona”. O interfone toca: É o Célio,
porteiro: tudo bem com a senhora D. Anna? Quer que eu mande o Antônio ficar
com a senhora? Antônio é o faz tudo do prédio e troca minhas lâmpadas *queimadas.
Sem lâmpadas para trocar, agradeço e dispenso a companhia.
Pandareco já está me
dando trabalho suficiente procurando os mais estranhos esconderijos. Está agora
atrás da impressora. Meu filho telefona do trabalho e me diz o óbvio: mãe,
não vai dar para ir ai e você não me saia de casa. Não posso deixar de
concordar. De repente algo acontece: todas as viaturas se movimentam e é um
milagre que não ocorram colisões já que estão colocadas nos mais estranhos
alinhamentos. Sirenes são ligadas. Repórteres e cinegrafistas correm para seus
carros. Em fila agora mais ou menos organizada, vão deixando a rua. A passagem
para a Pinheiro Guimarães é liberada e as duas cacatuas que moram numa gaiola
na varanda do apartamento em frente param de gritar, o que tinham feito
ensandecidas até este momento. Em minutos a rua volta a seu normal.
Agora dá pra ouvir o
canto dos passarinhos e até um mico aparece andando sobre a fiação do telefone.
Pandareco, zen, dorme relaxado como só os gatos sabem fazer. Ele já esqueceu. E eu? Faço o quê? Esqueço
também? Uma brisa suave movimenta as folhas da mangueira e eu recuo muitos anos
atrás e escuto a voz do proprietário que tentava me seduzir para comprar o
apartamento: a senhora não vai encontrar rua mais tranqüila do que esta!
Aqui só entra quem mora. E com vista para o Cristo e para a mata! O Cristo,
lá de cima deve estar rindo: ele continua belo, mas a mata...
Mas o que me espanta
e, confesso, me assusta, é que eu, e todos os que aqui habitam não se revoltem
com este espetáculo! O que é que está acontecendo conosco?
2009
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