- Desculpa entrar assim, mas estou exausto!
- Cruzes! Você me assustou! Como entrou?
- Pela janela do escritório. Estava aberta! Uma
imprudência!
- É, eu sei. Não tenho coragem de fechar na
cara da mangueira. Ela não ia entender nada. Mangueiras não são atingidas pela
violência que vai por aqui. Somos amigas, faz tempo. Por que veio?
- Já disse! Estou exausto. Preciso descansar um
pouco antes de voltar. E posso aparecer para você, que ainda acredita.
- Ah! É verdade. Acredito, sim. Muitas crianças
hoje? Daí o cansaço, não é?
- Crianças?! Faz tempo que não me ocupo delas.
- Não?! Como não? Ainda ontem vi nas Lojas
Americanas...
- Ah! Os de mentira. Estes continuam. Seria
cruel eliminá-los. Na verdade as crianças acreditam mais neles. Tiram fotos.
Fica sendo verdade. Eu mesmo nunca fui fotografado. Não gosto. Saio sempre mal
na foto.
- Mas se não é pelas crianças o que é que veio
fazer? Ainda hoje vi você no momento em que Maria Clara abria os presentes. É a
única criança da família. As outras cresceram sem pedir licença.
- Percebi sua expressão no momento em que ela
abriu os embrulhos.
- Ah, você viu! Mas se não era por Maria Clara
que você estava lá então por quê? Deu pra bisbilhotar agora?
- Foi bisbilhotando que me dei conta.
- De quê?
- Dos adultos. Estão quase todos precisando.
Muito mais que os pequenos. De uns anos para cá me voltei para eles. As
crianças, de um jeito ou de outro, sempre ganham alguma coisa. Os pais se
viram. E como! É admirável o que fazem. E as obras de caridade acabam
providenciando alguma coisa para as muito pobres. Mas os adultos...
- Não tenho visto o resultado desta sua
atuação. A maioria das pessoas está mal. Não é de presentes que precisam.
- E eu não sei? O que faço é pouco. Mas nesta
noite fabrico um pouco de alegria. E até esperança de dias melhores. Por uma
noite.
- Você é santo! Podia fazer muito mais.
- Há controvérsias. São Nicolau detesta este
duplo papel. Não assume a dupla personalidade. Então faço o que posso, sem
santidade mesmo. Afinal tenho as renas. Ninguém mais tem, por lá. Posso me
locomover. É uma grande vantagem. Os outros não descem à terra. Recebem os
pedidos, é claro. E até providenciam alguns. E dão resignação aos que não os
vêem atendidos. Mas eu posso me fazer presente. A presença é importante.
- Lá isto é.
- E você? Como está indo? Um dos motivos que
escolhi sua casa para descansar é que você nunca pede nada. Por que?
- Você não sabe? Estranho. Pensei que fosse
mais informado.
- Seria. Se tivesse mais tempo. Mas a maioria
precisa mais do que você. Então não me aprofundo pro seu lado. Mas diga: o que
é que você quer?
- O que você pode me dar já tenho: alegria hoje
e esperança no amanhã. Por isto acredito em você. Não dá pra sacar?
- Ah! Me
dá um copo d’água?
- Claro! (...) Prefere beber alguma outra
coisa? Um vinho? Um whisky?
- Nunca bebo em serviço. Não chega ser um
sacrifício. Só trabalho uma noite por ano.
- Durante o ano, não?! E a fábrica de
brinquedos? Os duendes?
- Faliu. Tive que despedir todo mundo. Foi
terrível. A quantidade de duendes desempregados é espantosa. Me sinto culpado.
Mas fazer o quê?
- É. Sei como é. Por aqui também é grande o
desemprego. Mas quem sabe melhora. Tenho esperança que sim.
- Todos os dias agradeço por isto: você
acredita mesmo em mim. Cada vez são em menor número os que acreditam. Tenho
pavor de acabar sumindo.
- Fica assim, não! Olha, faz uma exceção hoje.
Vamos tomar um bom vinho olhando a mangueira. Está linda!
- Sabe o que é mais? Você tá certa. Me deu
ânimo, sabe? Salta lá este vinho! Sobrou um pouco da torta de bacalhau?
2005
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