segunda-feira, janeiro 20, 2014

PARA SEMPRE "SERIAL CLUMSY"

Inútil tentar apagar de minha vida os episódios de “serial clumsy”. Impossível! Além da minha extraordinária competência para produzir novos, os passados ficam gravados na memória dos que os presenciaram. Quando me reencontram, as testemunhas desse passado, já vêem em minha direção às gargalhadas. Puxa vida! Tanta coisa para lembrarem sobre mim e o que ficou gravado foram minhas desventuras. Pior é que sempre me relatam o ocorrido como se não houvesse sido eu a protagonista das comédias de pastelão que produzo.

Em vão procurei durante anos uma explicação para este meu carma. Recentemente ao ler o espantoso livro Tabula Rasa do não menos espantoso Steven Pinker senti certo alívio. São os genes. Não é minha culpa. Nasci assim. Quem sabe descendente de um longínquo chipanzé trapalhão. De qualquer modo procuro esquecer e às vezes por longos anos alguns destes históricos incidentes me saem da memória. Foi assim com o caso do dentista. Havia ocorrido há mais de quarenta anos e até a semana passada eu havia conseguido escamoteá-lo.

Estava eu num shopping a procura de um tênis de rodinha. Shopping tem o estranho poder de me desorientar e para piorar o tal tênis parecia ser o único objeto desejado por toda aquela multidão que atravancava os corredores: a encomenda do Dia da Criança feita por minha pequena neta mineira havia se esgotado em todas as lojas. Eis que se dirige a mim um casal idoso. Não os reconheci de pronto e esclarecido o setor de origem espantei-me que me houvessem reconhecido. Era oriundo do setor FAB, setor este não mais frequentado desde 1967.

Um parêntese para esclarecer: minha vida é povoada por pessoas classificadas em setores com siglas: FAB, SERPRO, DSR, IBRA, INCRA, NEAD, PCF e por aí vai.  Desconfiei do que ia ocorrer: o casal ria muito ao se identificar. E lá veio a frase fatal: lembra? Quase morremos de rir! Você continua assim? E o incidente volta em toda sua crua tragédia.

Era o ano de 1959. Tinha eu vinte e nove anos e a cena se passava em Salvador, mais precisamente na Avenida Sete de Setembro em frente a uma farmácia. Antes do relato a que me obrigo para exorcizar esta dolorosa lembrança é necessário que eu esclareça detalhes que, se não desculpam, pelo menos explicam em parte meu extraordinário comportamento: meu então marido à época, Capitão Aviador, era (e é ainda, benza-o Deus!) uma das pessoas mais finas e educadas que conheci. Filho de franceses tinha dupla cidadania e optou pela brasileira para ingressar na FAB. Um de seus maiores sofrimentos (e também de minha sogra) era a minha não conformidade com os cerimoniosos rapapés ainda em voga naquele tempo. Perdidas no tempo eu ainda me insurgia contra as aulas de boas maneiras de Fräulein e teimava em não agir como era requerido, desobedecendo, ignorando ou me atrapalhando com algumas regras da etiqueta vigente.

Como dizia mamãe eu não era mal educada; era mal aprendida. Uma destas regras, quase sempre, causava sérios transtornos: o beija mão. Esta determinava que os senhores (estou falando de gente bem jovem!) deviam beijar a mão de senhoras casadas. Eu parecia ter algum problema com isto porque sempre que um deles se adiantava para fazê-lo eu, ao invés de estender graciosamente a mão para receber o ósculo, me apoderava daquela que me era estendida e a sacudia furiosamente num vigoroso aperto. Para evitar tal impropriedade, sempre que um deles ia se aproximando, meu marido sem movimentar os lábios, como um ventríloquo, murmurava: vai beijar a mão. A intenção era que executasse, com graça e a tempo, o gesto de estendê-la na altura certa. Infelizmente nem sempre funcionava.  Na maioria das vezes meu ímpeto era tal que provocava um choque contundente entre a minha mão que subia e a gentil boca de descia. Mas por vezes dava certo e isto, tenho certeza, garantiu mais alguns anos de duração ao nosso casamento.

É necessário que se esclareça que esta beijação só se dava intramuros, ou seja, não se beijava a mão de uma senhora na rua, a céu aberto. Isto posto posso passar ao relato do que fui forçada a recordar pelo risonho casal. Íamos nós (o casal, meu marido e eu) subindo a Avenida Sete em demanda de um cinema. Eis que vem em nossa direção o Dr. Bustani, nosso dentista: um homem extremamente fino e um emérito beijador de mãos. Estávamos em plena rua e portanto o murmúrio de alerta e advertência de meu marido não se fez ouvir. Para minha desgraça meu cérebro que registrara a imagem do dentista ligada à habitual e ventriloquista mensagem conjugal, entrou em curto. Ao nos defrontarmos, ele e eu, num gesto gracioso adiantei-me... e beijei a mão dele!!! Só me dei conta do horror quando vi, a milímetros de meu nariz, a mão que tentava se livrar da minha. Levanto o rosto, desolada, ainda a tempo de ver a expressão de horror e pânico de Dr. Bustani que engatou uma primeira afastando-se sem dizer palavra. Voltei-me para meu marido buscando apoio, mas ele havia sumido bem como o casal. Com aquela sensação de total solidão que sempre me acomete depois de uma dessas, o percebo escondido na farmácia em companhia do casal às gargalhadas. Devastado, com uma expressão de cortar o coração, ele conseguiu murmurar em francês, na intenção de que o casal não fosse informado de seu péssimo juízo a meu respeito: ça a été dégoutant!

2006


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