O marido da Tia Madrinha era o Tio Pediatra, aquele possuído
de uma fúria interna e que a troco de nada deblaterava aos céus. Para mim isto
era apenas uma característica que o identificava como características outras
identificavam os demais tios, todos adorados e adoravelmente loucos. A
transmutação do namorado em noivo estava correndo como o esperado e só anos
depois este me confessou ter ficado apavorado, com a série de jantares que foi
programada pela família para festejar o evento. Os incidentes inusitados a que
desde muito havia assistido no sítio da família em Miguel Pereira (nos
conhecíamos desde criança) prenunciava a possibilidade de ocorrências nada
normais também no Rio de Janeiro.
E eis que chega o dia das boas vindas ao clã, produzidas pela
Tia Madrinha. Estava o noivo longe de imaginar que pudesse ocorrer o que
ocorreu embora os jantares precedentes houvessem fornecido indícios de que a probabilidade da ocorrência era significativa. A Tia Madrinha era linda e cercava-se de beleza:
a casa, as roupas, o perfume, a sala de jantar que dava para um pátio florido, tudo
era deslumbrante. Orgulhosa, percebi admiração nos olhos do noivo que via
aquele grandor pela primeira vez.
Tudo se passou muito bem até que nos sentamos à mesa
primorosamente posta e ainda melhor servida. Neste momento o Tio Pediatra iniciou
um verdadeiro interrogatório ao noivo buscando
assegurar-se de que à mim –
sobrinha predileta – seria proporcionado um futuro cor-de-rosa e sem
dificuldades. No início foram apenas perguntas voltadas para detalhes da vida
numa base aérea (ele, o noivo, era aspirante da FAB aguardando a promoção para
segundo tenente). Militares não os havia na família e nem mesmo faziam parte do
círculo de amigos e conhecidos. Para falar a verdade estes eram um tanto
desconsiderados já que para a Avó (que ditava as regras e o tom) só três
profissões eram aceitas como desejáveis: médico, engenheiro e advogado. E nesta
ordem de importância.
O noivo, de poucas palavras, estava mais mudo que de costume
e respondia com alguma dificuldade. Eu procurava auxiliar demonstrando o
entusiasmo de que estava possuída por transferir-me para o nordeste, pela
primeira vez deixando aquele clã tão fechado. Uma aventura mesmo.
Tudo ia se passando muito bem até que o Tio perguntou se já havíamos
tratado de alugar casa. Ao ouvir do noivo que a FAB fornecia casa aos oficiais notei,
pelo tom da próxima pergunta feita que a
resposta iria funcionar como um estopim dando início de um dos acessos de fúria
costumeiros: De graça?! Ao ouvir a
confirmação desta benesse, o Tio entre dentes formula outra pergunta: E quanto você irá ganhar como segundo
tenente?
Incauto sem ideia do que estava por vir o noivo informa
quantia que não era lá muito significativa, mas que causou um efeito
devastador no Tio que já num tom de voz bem mais alto dirige-se a mulher: veja só, minha mulher, enquanto nós, pessoas
de bem, temos que nos esforçar por ganhar a vida, um fedelho que ainda tem
cheiro de leite azedo recebe uma fábula para passear de aviãozinho e ainda tem
casa de graça. A Tia sorri pouco preocupada com a tempestade que se armava
e responde um distraído: ora, meu nego,
bom para eles, não é?
Agora aos berros o Tio declara que se era bom para eles era
péssimo para os outros mortais que não dispunham das facilidades com que estes
vadios se locupletavam ao começar a vida. O noivo, pálido (de raiva) caiu na
armadilha e respondeu que oficiais aviadores eram pessoas dignas e que cumpriam
tarefas nobres jamais exigidas aos civis, ignorando o ponta-pé de alerta que
lhe mandei por baixo da mesa. Apoplético o Tio arremessa os talheres sobre o
prato e se levanta para iniciar o discurso em que as forças armadas brasileiras
seriam execradas. Iniciou por uma pergunta: se
um misero segundo tenente ganha esta fábula quanto não ganhará um brigadeiro?
A esta pergunta ele mesmo responde aos berros declarando uma
quantia astronômica com a qual investiu sobre o pobre noivo que a esta altura
também se levanta declarando que não estava ali para ser insultado. Uma
gargalhada soturna se faz ouvir e o Tio volta-se para mulher: veja só minha mulher, salafrários e ladrões
hoje em dia se acham com direito de se sentir insultados quando cidadãos
decentes os colocam nos devidos lugares! O noivo procurando se conter
dirige-se à Tia pedindo desculpas e informando que vai se retirar.
Não vi outro jeito senão o levantar-me e segui-lo. Somos perseguidos
pelo Tio empunhando um pãozinho que maneja como a uma espada aos gritos de: fujão! Covarde! Já na rua escutamos o
som de uma janela que se abre com violência emoldurando a figura do Tio aos
gritos: parasita da nação! Volte aqui,
seja homem! Passados sessenta anos ainda me espanto do casamento não ter
sido desfeito ali. Mesmo por que, naquele dia eu acrescentei a ofensa à injuria
rindo convulsivamente o invés de aliar-me à indignação do noivo.
A palavra “happening” usada para descrever acontecimentos inesperados surgiu muitos anos depois, mas para mim, e para toda família, estes
ataques eram exatamente isto e sempre foram julgados extremamente divertidos. E
o noivo, depois de marido, conformou-se. Nunca chegou à perfeição de rir
gostosamente, mas até conseguia sorrir quando num tom verdadeiramente carinhoso
o Tio Pediatra o saudava: e como vai este
meu querido sobrinho parasita? Ainda dilapidando os cofres públicos?
2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário