segunda-feira, janeiro 27, 2014

JANTAR DE NOIVADO

O marido da Tia Madrinha era o Tio Pediatra, aquele possuído de uma fúria interna e que a troco de nada deblaterava aos céus. Para mim isto era apenas uma característica que o identificava como características outras identificavam os demais tios, todos adorados e adoravelmente loucos. A transmutação do namorado em noivo estava correndo como o esperado e só anos depois este me confessou ter ficado apavorado, com a série de jantares que foi programada pela família para festejar o evento. Os incidentes inusitados a que desde muito havia assistido no sítio da família em Miguel Pereira (nos conhecíamos desde criança) prenunciava a possibilidade de ocorrências nada normais também no Rio de Janeiro. 

E eis que chega o dia das boas vindas ao clã, produzidas pela Tia Madrinha. Estava o noivo longe de imaginar que pudesse ocorrer o que ocorreu embora os jantares precedentes houvessem fornecido indícios de que a probabilidade da ocorrência era significativa. A Tia Madrinha era linda e cercava-se de beleza: a casa, as roupas, o perfume, a sala de jantar que dava para um pátio florido, tudo era deslumbrante. Orgulhosa, percebi admiração nos olhos do noivo que via aquele grandor pela primeira vez.  

Tudo se passou muito bem até que nos sentamos à mesa primorosamente posta e ainda melhor servida. Neste momento o Tio Pediatra iniciou um verdadeiro interrogatório ao noivo buscando  assegurar-se de que à mim –  sobrinha predileta – seria proporcionado um futuro cor-de-rosa e sem dificuldades. No início foram apenas perguntas voltadas para detalhes da vida numa base aérea (ele, o noivo, era aspirante da FAB aguardando a promoção para segundo tenente). Militares não os havia na família e nem mesmo faziam parte do círculo de amigos e conhecidos. Para falar a verdade estes eram um tanto desconsiderados já que para a Avó (que ditava as regras e o tom) só três profissões eram aceitas como desejáveis: médico, engenheiro e advogado. E nesta ordem de importância. 

O noivo, de poucas palavras, estava mais mudo que de costume e respondia com alguma dificuldade. Eu procurava auxiliar demonstrando o entusiasmo de que estava possuída por transferir-me para o nordeste, pela primeira vez deixando aquele clã tão fechado. Uma aventura mesmo.

Tudo ia se passando muito bem até que o Tio perguntou se já havíamos tratado de alugar casa. Ao ouvir do noivo que a FAB fornecia casa aos oficiais notei, pelo tom da próxima pergunta feita  que a resposta iria funcionar como um estopim dando início de um dos acessos de fúria costumeiros: De graça?! Ao ouvir a confirmação desta benesse, o Tio entre dentes formula outra pergunta: E quanto você irá ganhar como segundo tenente?

Incauto sem ideia do que estava por vir o noivo informa quantia que não era lá muito significativa, mas que causou um efeito devastador no Tio que já num tom de voz bem mais alto dirige-se a mulher: veja só, minha mulher, enquanto nós, pessoas de bem, temos que nos esforçar por ganhar a vida, um fedelho que ainda tem cheiro de leite azedo recebe uma fábula para passear de aviãozinho e ainda tem casa de graça. A Tia sorri pouco preocupada com a tempestade que se armava e responde um distraído: ora, meu nego, bom para eles, não é?

Agora aos berros o Tio declara que se era bom para eles era péssimo para os outros mortais que não dispunham das facilidades com que estes vadios se locupletavam ao começar a vida. O noivo, pálido (de raiva) caiu na armadilha e respondeu que oficiais aviadores eram pessoas dignas e que cumpriam tarefas nobres jamais exigidas aos civis, ignorando o ponta-pé de alerta que lhe mandei por baixo da mesa. Apoplético o Tio arremessa os talheres sobre o prato e se levanta para iniciar o discurso em que as forças armadas brasileiras seriam execradas. Iniciou por uma pergunta: se um misero segundo tenente ganha esta fábula quanto não ganhará um brigadeiro?

A esta pergunta ele mesmo responde aos berros declarando uma quantia astronômica com a qual investiu sobre o pobre noivo que a esta altura também se levanta declarando que não estava ali para ser insultado. Uma gargalhada soturna se faz ouvir e o Tio volta-se para mulher: veja só minha mulher, salafrários e ladrões hoje em dia se acham com direito de se sentir insultados quando cidadãos decentes os colocam nos devidos lugares! O noivo procurando se conter dirige-se à Tia pedindo desculpas e informando que vai se retirar.

Não vi outro jeito senão o levantar-me e segui-lo. Somos perseguidos pelo Tio empunhando um pãozinho que maneja como a uma espada aos gritos de: fujão! Covarde! Já na rua escutamos o som de uma janela que se abre com violência emoldurando a figura do Tio aos gritos: parasita da nação! Volte aqui, seja homem! Passados sessenta anos ainda me espanto do casamento não ter sido desfeito ali. Mesmo por que, naquele dia eu acrescentei a ofensa à injuria rindo convulsivamente o invés de aliar-me à indignação do noivo.

A palavra “happening” usada para descrever acontecimentos inesperados surgiu muitos anos depois, mas para mim, e para toda família, estes ataques eram exatamente isto e sempre foram julgados extremamente divertidos. E o noivo, depois de marido, conformou-se. Nunca chegou à perfeição de rir gostosamente, mas até conseguia sorrir quando num tom verdadeiramente carinhoso o Tio Pediatra o saudava: e como vai este meu querido sobrinho parasita? Ainda dilapidando os cofres públicos?
2009




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