segunda-feira, janeiro 13, 2014

4 DE JANEIRO DE 1959

Arrumar gavetas e armários é uma daquelas tarefas que consigo adiar, sem menor culpa, por intervalos de tempo desmedidos. Por anos, às vezes. Mas sempre que me disponho a fazê-lo acabo curtindo uma deliciosa viagem. Esta semana, corajosamente desabei todas as gavetas de fotografias! Não diria que as tenho aos milhares, mas certamente centenas. Locais e pessoas brotaram causando espanto, emoção, riso e saudade. Algumas trazendo de volta pessoas que já se foram ou se perderam nestes descaminhos que a vida teima em criar.

Mas as que mais me atraem são sempre as que refletem a mim mesma em idades crescentes começando em berços e fraldas. Destas é claro a memória nada me diz. São memórias de outros e nelas não consigo me reconhecer. Poderiam ser qualquer criança, na verdade.  Mas, a partir de certa idade, creio que por volta de três anos, consigo recuperar luzes, cores, ruídos e perfumes. Algumas me assustam por tão diferentes das imagens que a memória conservou. Coringa, meu primeiro cavalo não era enorme! Fraulein não era feia! Tio Carlos não era bonito! Meus cabelos não pareciam com os de uma estrela de Hollywood. Na verdade eram apenas despenteados (sempre).

E eis que hoje me caiu nas mãos uma foto histórica. Olho no verso e lá estão nomes e a data. Dia em que as forças de Fidel Castro entraram em Camaguey. Não creiam que conheço tanto assim a História desta nossa América a ponto de lembrar-me de maneira tão precisa o dia, o mês e o ano. Lembro-me porque entrei em Camaguey no mesmo dia que em que Fidel o fez! Num por acaso. Estava, em companhia de meu marido e outros oficiais, a caminho dos Estados Unidos, onde eles iam buscar aviões que haviam sido adquiridos pelo governo brasileiro. Não tenho muita certeza, mas acho que eram os Netuno, aviões destinados à caça submarina. Ia comigo uma grande amiga – Elsie - também casada com um oficial e que havia sido minha colega de ginásio no Bennett. Ambas partíamos para a aventura de conhecer Nova York enquanto os maridos se mandariam para a California em busca dos tais aviões. Voltaríamos pela aviação comercial, mas a ida se fazia num DC-3 da FAB, com bancos de metal e de lado. Um horror.

Mas nós estávamos tão entusiasmadas que nem este tormento que duraria dias, nos trazia qualquer desconforto. E foi assim que subindo e descendo sem parar (a autonomia do DC-3 não era lá estas coisas), numa das ultimas etapas pernoitamos na Guiana Inglesa. Dali seguiríamos para Miami onde tomaríamos um ônibus para Washington e finalmente Nova York! Eis que pouco depois da decolagem o comandante anuncia uma pane no motor esquerdo, anúncio este seguido de outro bastante desagradável: o direito não estava lá estas coisas. No avião só havia pilotos, sargentos mecânicos e nós duas. E se eles pareciam calmos, achamos de bom alvitre também ficar. O lugar mais próximo para um pouso de emergência era a pista de Camaguey, em Cuba. E Cuba estava em plena revolução.

A notícia estourou como uma bomba. Naquela época (quase) todos torciam por Fidel entusiasticamente, mas a ideia de sermos confundidos com possíveis inimigos não era agradável. Pelo rádio se soube que naquele mesmo dia Fidel havia entrado em Camaguey. Ficamos excitadíssimos. Iríamos ver Fidel. Devidamente identificada como aeronave brasileira nos foi dada permissão de pouso.

Ao tocar o chão, através das pequenas janelas, emocionados vimos os guerrilheiros com suas armas e suas barbas. No lanche mais que frugal que nos ofereceram veio a grande decepção. Não poderíamos ir à cidade por questões de segurança. Ver Fidel, nem pensar. Confinados ao campo de aviação o jeito foi confraternizar com os guerrilheiros que o ocupavam. Contaram-nos da entrada triunfal de Fidel na cidade, população nas ruas, enlouquecedores aplausos. O advento da câmara digital estava longe de ocorrer e eu sem máquina fotográfica!  Elsie também não a tinha. Estas eram um dos itens que pretendíamos adquirir nos Estados Unidos. Imploramos ao Comandante (único que possuía tal aparelho e pessoa de quem faço questão de esquecer o nome) a nos fotografar na companhia de nossos gentis e recém conhecidos guerrilheiros. Tivemos certa dificuldade em convencê-lo porque ele era um dos poucos que não aprovava Fidel que considerava comunista e como tal certamente comia criancinhas vivas. Mas finalmente vencemos a parada.

Em 1969, dez anos depois, quando interrogada pelo Sops (dependência do DOPS num porão da praça XV), me foi mostrada esta foto como prova das muitas acusações que me faziam: eu, além de fomentar a revolução camponesa no interior de Goiás havia sido atuante na revolução cubana! O comandante sem nome e sem muitas outras qualificações também, era o dono dos negativos e, provavelmente, deve ter se felicitado em ter cedido a nossa insistência em tirar a foto. Isto lhe proporcionou dar um testemunho de sua fidelidade ao regime militar anos depois. Afinal a foto comprovava que desde criancinha havia se preocupado em documentar a adesão daquelas duas perigosas subversivas, às forças de Fidel na companhia dos terríveis e sanguinários guerrilheiros Gutierez, Quintana, Chaco e Corrucho, 


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