quinta-feira, janeiro 23, 2014

NUNCA É TARDE

Já lá vão mais de setenta anos! Incrível! Jamais, em meus mais dourados sonhos, imaginei que poderia dizer uma frase como esta. No portal dos oitenta me delicio vendo os álbuns de fotografia primorosamente organizados por minha mãe. E é de lá que me sorri Fräulein Grete. Estranho! Ela, que me lembre, não sorria nunca! Vai ver mamãe exigiu este sorriso. É, deve ter sido isto. Mamãe tentava por todos os meios e modos tornar Fräulein mais palatável para mim. Porque eu, positivamente, não gostava dela que se contrapunha, com enorme desvantagem, à Babá. Esta sim, grande paixão. Que saudade daquele colo e do “minha nega” quando me acordava.

Cabia à Babá o meu acordar para enfrentar o dragão Fräulein e o banho gelado que me era imposto no inverno. Sabe-se lá porque tínhamos, meu irmão e eu, uma babá e uma governanta. Nunca perguntei a razão disto à mamãe. Vai ver percebeu que sem o carinho de Babá eu não resistiria à autoridade germânica de Fräulein Grete. Além disto, era moda ter governanta alemã. Isto foi antes da guerra. 

Quando a Alemanha invadiu a Áustria, eu, informada pelas conversas à mesa do jantar passei de um estado de resistência passiva a atos de beligerância explícita. De nada adiantou papai me explicar que não deveria confundir a pessoa com o país conduzido por Hitler. Eu chegava a ver o ridículo bigodinho naquele rosto louro de olhos azuis. A frase “ein gebildetes mädchen biltet nicht dieses“ (uma menina educada não faz isto) passou a ter uma freqüência espantosa. E a menina mal educada que já não gostava da governanta passou a odiá-la.

As aulas de boas maneiras que já eram problemáticas tornaram-se um caos. Elas consistiam num espetáculo teatral que simulava situações sociais onde ocorriam jantares, conversas, dança e que mais sei eu. Ainda havia as aulas de costura, de bordado e – pasmem – de francês ensinado por uma alemã! A estas se somavam as de cozinha onde eu me tornei uma emérita fazedora de rotegriff, marzipan e apfelstrudel. O diabo da mulher ocupava meus dias e até as noites quando antes de dormir eu rezava em alemão! Olho de novo a foto. O espanto me vem: era bonita a Fräulein? Como é que pode?! Não resisto. Ligo para minha prima, dois anos mais velha do que eu, único vivente que ainda deve lembra-se dela:

-        Minha Fräulein era bonita?
-        Era. Muito.
-        Era nada! Tinha um queixo enorme.
-        Não tinha!
-        Mas os cabelos eram feios.
-        Nada disso. Eram louros! Lindos!

Desligo e penso: ela deve estar enganada. Está fantasiando para me irritar. Penso em perguntar a meu irmão, mas quando Fräulein partiu, num navio cargueiro, antes do Brasil entrar em guerra, ele tinha só 5 anos. Não vai lembrar mesmo. Folheio o álbum furiosamente. Devem existir outras fotos. E não é que existem? Um sobressalto: numa delas eu estou no colo de Fräulein que me olha com carinho. Pareço bem à vontade retribuindo o olhar. Da memória o espanto: escuto numa voz doce: liebes Mädchen. Querida? Eu? E desaba sobre mim um enorme sentimento de culpa com um atraso de mais de setenta anos. Esta é uma culpa que vai durar até o fim de meus dias. Como vão durar todos os ensinamentos dela.

Deles me sirvo todos os dias sem me dar conta. Em cada “bouquet garni” que junto às minhas receitas, enrolado num pequeno pedaço de filó, ela está presente. Em cada bainha que faço; em cada echarpe que tricoto; em cada observação de alguém que se espanta de minha postura não curvada pela idade! Esta postura devo a um cabo de vassoura que me era colocado nas costas preso pelos cotovelos com os braços flexionados e à voz que alertava a cada momento: endireite-se!. Richten sie! Imediatamente ponho os ombros para traz e humilde, murmuro: Ich bin ein sehr bösartiges Mädchen. Fui uma menina muito, muito má. Por favor, Fräulein, perdoe-me! Sei que é tarde, mas fazer o quê? Só hoje percebo.

Perdemos contato com você. Apenas uma carta depois da partida. Depois mais nada. Numa Berlim destruída você não deve ter sobrevivido. Tenho certeza de que teríamos tido notícia se isto houvesse ocorrido. Lembro-me de que papai e mamãe procuraram durante muito tempo e nada. Sinto agora o que não senti na época. E dói. Num enorme mapa na parede papai anotava com alfinetes coloridos o avanço das tropas aliadas. Da Normandia a Berlim as acompanhei entusiasmada também com os bombardeios da RAF tendo no vestido pregado o broche da Ordem do Fole que era a dado aos que contribuíam com a RAF, pagando por cada avião abatido. E nunca pensei que você era alvo, Fräulein. Penso agora.

Será que você reconheceria nesta velha senhora aquela menina tão encapetada? Acho que não. Faço os cálculos. Você era apenas 16 anos mais velha do que eu. Poderia estar viva. Seria bom se estivesse porque eu falaria o que não sei falar aos céus, que mesmo sem acreditar, é onde eu desejo que você esteja. Mas sabe de uma coisa? Hoje, botando em foco a imagem distorcida pela menina, me vem a sensação que você sempre soube que um dia eu lhe falaria assim. Esta certeza me vem conduzida pelo som doce e carinhoso do querida dito àquela menina tão má.

2006

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