A
declaração do pedreiro vem como uma bomba: as
paredes de sua casa são fora de esquadro. A obra sonhada há anos e que
tornaria minha casa perfeita está em pleno vapor. Várias vezes por dia, nesta
última semana, pensei seriamente em atear fogo às vestes. Andava pela casa como
um zumbi, envolta numa nuvem de poeira, sem paradeiro certo. Não havia como nem para onde fugir. Tropeçava em caixas e caixotes, procurando em vão coisas
absolutamente indispensáveis à vida que misteriosamente sumiam e reapareciam em
lugares absurdos; enlouquecia com o barulho de parede vindo a baixo enquanto a
serra que corta ladrilhos me fazia sentir habitante de um mundo sonorizado por uma
monumental broca de dentista.
Qualidade
de vida virou coisa do passado e a sensação era a de nunca mais recuperar a paz.
E agora, para coroar, as paredes estão fora de esquadro. Estão, não! São
fora de esquadro. Pela expressão de Seu Marcelo este fato é grave. Gravíssimo.
E terá, provavelmente, conseqüências funestas. Atrás de Seu Marcelo os dois
ajudantes que espantosamente chamam-se também Marcelo, têm um ar desolado. Em
pânico procuro informar-me sobre o desastre. Seu Marcelo é categórico: a senhora tem que tomar uma decisão: para
que lado vai ficar a fileira de azulejos e de pisos que vai ficar torta? O
tom não deixa dúvidas: uma fileira no chão e outra na parede vão ficar
tortas. O semblantes de Marcelo 1 e dos Marcelo 2 e 3 mostram desolação que aumenta exponencialmente face a minha covarde resposta: o senhor decide. Sinto que perdi pontos. Não era isto que se
esperava de mim. Fazer o que? Firme repito: o
senhor decide e eu não quero falar mais nisto.
Marcelo
1, profundamente decepcionado acompanhado dos Marcelos 2 e 3, dirige-se para o
que será um dia uma cozinha e em meio a destroços confabulam baixo. É evidente
que não me consideram digna de sequer ouvir a discussão que decidirá o lado
torto. Humilhada dirijo-me para onde um dia localizou-se meu quarto onde ainda
funciona um aparelho de televisão. Mesmo imunda e tendo como fundo musical a
sinfonia de serras e marretas disponho-me a assistir o jogo da decisão do
campeonato europeu entre o Real Madrid e o Liverpool. Aumento o som ao máximo tendo a certeza de
que, à noite, receberei um telefonema do síndico portador da reclamação dos
muitos vizinhos (1 do lado, dois em baixo e 2 em cima) que desde o início das
obras me infernizam a vida.
Jogo
já começado uma batida discreta na porta. Fico em pânico: e agora? Vai ver
todas as fileiras vão ficar tortas! Do outro lado da porta Marcelo 1 pergunta
tímido: quanto está o jogo? E me dou
conta de que aqueles Marcelos não devem ter em casa televisão a cabo e que,
como eu, adorariam ver o jogo. Esqueço o aborrecimento que me deram e convido: venham ver o jogo. Depois vocês continuam.
Dois coelhos mortos com uma só cajadada: uma boa ação e eliminação do barulho.
Tímidos, os Marcelos ajeitam-se no chão (não existem mais cadeiras). Na verdade
não existe nem cama.
De
inicio permanecem em silêncio. Aos poucos, alguns comentários em voz baixa
revelam três desagradáveis torcedores do Liverpool. Para evitar maiores
conflitos declaro minha condição de torcedora do Real Madrid. Espero com isto
eliminar dali por diante qualquer manifestação a favor do Liverpool e,
sobretudo, qualquer observação depreciativa sobre a atuação do Real Madrid. Em
vão: Marcelo 1 comenta a gordura do Ronaldo Fenômeno. Profundamente irritada
solto um “selvagem!” acusando a falta de Traoré em Ronaldo que é retrucado por
Marcelo 1 com: o gordo se jogou.
Catimbeiro! O quase gol de escanteio provoca entusiásticos gritos
Marcelenses.
Esquecidos
da cerimônia inicial os três se perdem em comentários desairosos sobre o Real,
ponteados de gritos de incentivo aos atacantes do Liverpool. Foi aí que
explodi: vocês estão no meu
quarto, vendo a minha televisão, a meu convite e eu não vou
admitir ninguém aqui torcendo pelo Liverpool. E tem mais: não quero fileira
nenhuma torta. Nem de ladrilho, nem de piso. Os Marcelos não se intimidam e
continuam a vociferar estímulos a seu time e imprecações desairosas ao meu que
esquecida do absurdo da situação começo a comportar-me do mesmo modo. A cada
pênalti chutado estabelecemos um pandemônio.
Findo
o jogo, com a vitória do Liverpool, um silêncio pesado toma conta do ambiente.
Os Marcelos levantam-se mudos e tímidos como entraram e dirigem-se para os
escombros. Já no corredor, Marcelo principal volta-se, num sorriso que é
acompanhado por sorrisos dos outros: nunca
a gente viu um jogo desses inteiro. Foi maneiro. Sabe, dona, a senhora é que é
fora de esquadro.
2005
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