sábado, janeiro 11, 2014

NO TEMPO EM QUE ELES FALAVAM


Lá de um passado remoto Manchinha olha enviesada enquanto derramo a ração no cocho: para o Dream vai ser cenoura, não vai? ela diz. Domingo. Era minha vez de alimentá-los. Os cavalos. Um tanto irritada respondo: ele é meu cavalo, você não é. Ela muda de assunto e declara com a boca cheia: tenho medo de descer o morro. Respondo irritada: E eu não sei? Da última vez você quase me derrubou. É ridículo este medo. Agora a irritação é dela: vai dizer que não tem medo de nada. Hesito. Não é muito aconselhável demonstrar medo a um cavalo. No caso uma égua. Mas é melhor não mentir: tenho. De barata. Manchinha ri: isso sim é ridículo. Tenho que concordar: é mesmo.

Na baia ao lado Sarandi reclama: como é? E eu? Afago o dorso de Manchinha que se volta e sorri. Entro na baia de Sarandi que comenta: esta sua preferência por trotadores é absurda. Vou ter que explicar pela enésima vez: não é preferência. É que vocês não saltam. O “vocês quem cara pálida?” vem como um insulto. Marchadores, vocês marchadores, explico também pela enésima vez. Comida jogada no cocho ele não se digna a comentar. De longe, três baias adiante, Dream Boy sorri para mim, piscando o olho, na certeza das cenouras e no encanto do descarte dos marchadores.

Ocupo-me agora de Bandoleiro. Nunca nos entendemos bem e ele certamente ouviu o comentário sobre marchadores. Finge que não me vê e nem olha para a ração já no cocho. Também finjo que não me dou conta da grosseria e demando à baia de Ventania que, grande marchador, orgulha-se disso: pode isto? Deve ser complexo de inferioridade deles. Vai dizer eu você não adora uma boa marcha quando não salta? Um refrigério esta compreensão: adoro, sim. E a sua...  é especial, ele completa. Convencido, digo eu. Ele ri: hoje sou eu que vou com você ao trem das onze buscar os jornais ou ELE? Sorrindo respondo: Você. Dream ainda não está bem. As orelhas movem-se pra frente, enérgicas: nada de freio, tá? Concedo: vá lá. Brindão. Mas só desta vez. Com bridão você custa a obedecer.

Da baia ao lado Gaucho reclama: como é? Esta ração sai ou não sai? Vou para lá. Qual é a pressa? Você nem com fome deve estar. Há dias que Mamãe não monta. A expressão dele é triste: você sabe por quê? Mamãe andava ocupada fazendo edredons com a lã dos carneiros tosquiados. Não achei prudente dizer isto. Ser relegado ao abandono por edredons é terrível. E ele está visível e justamente magoado. Minto: ela está com gripe. Olha só, hoje à tarde dou uma volta do Lago de Javari com você. Ele só diz “oba” e enfia o focinho na ração.

Agora sim. É a vez DELE. Dream Boy. Tão lindo e tão amigo. Derramo as cenouras no cocho e nele me encarapito para nossa conversa matinal: melhorou, meu bem? O som das cenouras sendo mastigadas é maravilhoso e me aguça a gulodice: me dá uma? Não espero a resposta e começo a mastigar também. Ele levanta um pouco a cabeça: amanhã já estou bom. Muda de assunto, falando baixo: você mentiu quando disse que sua mãe está com gripe. Eu sempre sei quando você mente. Preocupo-me: não conta pra ele. Está tão triste o coitado. E Dream escandalizado: alguma vez contei segredo seu? Não. Ele nunca! O meu fiel confidente sabe de coisas incríveis a meu respeito e jamais abriu a boca. Nem mesmo quando comecei a namorar pra valer e olha que ele não gostava deles: os namorados. Pior ainda não gostava dos cavalos que possuíam.

Eu só tinha 11 anos quando ele entrou em minha vida. Agora com 17 nossa amizade e cumplicidade só faziam aumentar. Ele pergunta: já tomou café? Quando sai de casa, Luiza estava botando a mesa. O cheiro de bolo de aipim invadia a casa, mas ninguém havia aparecido. Em segredo Dream informa: ontem à noite Virgílio esteve aqui para me examinar. Disse que hoje vai me levar para o picadeiro para ver como me comporto. Escandalizada respondo: de jeito maneira. Quem vai fazer isto sou eu. Ora bolas. Por que ele tem que se meter? Ele que cuide daquele pangaré dele. Sarandi irritado com a alcunha pangaré começa a bater com as dianteiras no chão. Dream ri: ele é médico e você... sou sua dona, completo. Você é meu. Só meu, ouviu?  Ele comovido: ciumenta. Cuspo o resto da cenoura: que droga!  Olha só, se ele quiser te montar joga ele no chão. Dá um corcovo daqueles que só você sabe dar, tá? Dream duvida: ele não cai. É um excelente cavaleiro. Tão bom ou melhor que você. Isto foi demais: saio batendo a porta da baia furiosa.

Entro em casa e todos já estão na mesa do café. Virgilio pergunta: alimentou os animais? Para espanto da família uma explosão minha: animal é você. Eu alimentei cavalos. Não animais. E você é um médico que não entende deles. O casco de Dream está péssimo. Ele me cont... Paro a tempo. Ele o que? pergunta Virgilio. Ele..,ele... está mancando. Mesmo aquela família tão fora de esquadro jamais acreditaria que conversamos, eu e os cavalos. Volto-me para Mamãe: vem comigo buscar os jornais. Gaucho precisa se exercitar. Fico radiante com resposta positiva e faço um pedido absurdo que deixa todos de boca aberta: me faz um favor. Tosse e espirra de vez em quando no caminho. Ouço a voz de minha prima: embirutou.

E, vem o mágico olhar de papai que sempre sabe o que vai por dentro de mim, acompanhado de um “deixa ela. Ela sabe por que está falando isso”. Ele sabe! Preciso contar isto a Dream. Ele vai adorar. Podemos conversar os três.  
2013


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