Lá de
um passado remoto Manchinha olha enviesada enquanto derramo a ração no cocho: para o Dream vai ser cenoura, não vai? ela
diz. Domingo. Era minha vez de
alimentá-los. Os cavalos. Um tanto irritada respondo: ele é meu cavalo, você não é. Ela muda de assunto e declara com a
boca cheia: tenho medo de descer o morro.
Respondo irritada: E eu não sei? Da última vez você quase me derrubou. É
ridículo este medo. Agora a irritação é dela: vai dizer que não tem medo de nada. Hesito. Não é muito
aconselhável demonstrar medo a um cavalo. No caso uma égua. Mas é melhor não
mentir: tenho. De barata. Manchinha
ri: isso sim é ridículo. Tenho que concordar: é
mesmo.
Na
baia ao lado Sarandi reclama: como é? E
eu? Afago o dorso de Manchinha que se volta e sorri. Entro na baia de
Sarandi que comenta: esta sua preferência
por trotadores é absurda. Vou ter que explicar pela enésima vez: não é preferência. É que vocês não saltam. O
“vocês quem cara pálida?” vem como um insulto. Marchadores, vocês marchadores, explico também pela enésima vez.
Comida jogada no cocho ele não se digna a comentar. De longe, três baias
adiante, Dream Boy sorri para mim, piscando o olho, na certeza das cenouras e
no encanto do descarte dos marchadores.
Ocupo-me
agora de Bandoleiro. Nunca nos entendemos bem e ele certamente ouviu o
comentário sobre marchadores. Finge que não me vê e nem olha para a ração já no
cocho. Também finjo que não me dou conta da grosseria e demando à baia de
Ventania que, grande marchador, orgulha-se disso: pode isto? Deve ser complexo
de inferioridade deles. Vai dizer eu você não adora uma boa marcha quando não
salta? Um refrigério esta compreensão: adoro,
sim. E a sua... é especial, ele
completa. Convencido, digo eu. Ele
ri: hoje sou eu que vou com você ao trem
das onze buscar os jornais ou ELE? Sorrindo respondo: Você. Dream ainda não está
bem. As orelhas movem-se pra frente, enérgicas: nada de freio, tá? Concedo: vá
lá. Brindão. Mas só desta vez. Com bridão você custa a obedecer.
Da
baia ao lado Gaucho reclama: como é? Esta
ração sai ou não sai? Vou para lá. Qual
é a pressa? Você nem com fome deve estar. Há dias que Mamãe não monta. A
expressão dele é triste: você sabe por quê?
Mamãe andava ocupada fazendo edredons com a lã dos carneiros tosquiados.
Não achei prudente dizer isto. Ser relegado ao abandono por edredons é
terrível. E ele está visível e justamente magoado. Minto: ela está com gripe. Olha só, hoje à tarde dou uma volta do Lago de
Javari com você. Ele só diz “oba” e enfia o focinho na ração.
Agora
sim. É a vez DELE. Dream Boy. Tão lindo e tão amigo. Derramo as cenouras no
cocho e nele me encarapito para nossa conversa matinal: melhorou, meu bem? O som das cenouras sendo mastigadas é
maravilhoso e me aguça a gulodice: me dá
uma? Não espero a resposta e começo a mastigar também. Ele levanta um pouco
a cabeça: amanhã já estou bom. Muda
de assunto, falando baixo: você mentiu
quando disse que sua mãe está com gripe. Eu sempre sei quando você mente. Preocupo-me:
não conta pra ele. Está tão triste o coitado. E Dream
escandalizado: alguma vez contei segredo
seu? Não. Ele nunca! O meu fiel confidente sabe de coisas incríveis a meu
respeito e jamais abriu a boca. Nem mesmo quando comecei a namorar pra valer e
olha que ele não gostava deles: os namorados. Pior ainda não gostava dos
cavalos que possuíam.
Eu
só tinha 11 anos quando ele entrou em minha vida. Agora com 17 nossa amizade e
cumplicidade só faziam aumentar. Ele pergunta: já tomou café? Quando sai de casa, Luiza estava botando a mesa. O
cheiro de bolo de aipim invadia a casa, mas ninguém havia aparecido. Em segredo
Dream informa: ontem à noite Virgílio esteve
aqui para me examinar. Disse que hoje vai me levar para o picadeiro para ver
como me comporto. Escandalizada respondo: de jeito maneira. Quem vai fazer isto sou eu. Ora bolas. Por que ele
tem que se meter? Ele que cuide
daquele pangaré dele. Sarandi irritado com a alcunha pangaré começa a bater
com as dianteiras no chão. Dream ri: ele
é médico e você... sou sua dona,
completo. Você é meu. Só meu, ouviu? Ele comovido: ciumenta. Cuspo o resto da cenoura: que droga! Olha só, se ele quiser te montar joga ele no
chão. Dá um corcovo daqueles que só você sabe dar, tá? Dream duvida: ele não cai. É um excelente cavaleiro. Tão
bom ou melhor que você. Isto foi demais: saio batendo a porta da baia
furiosa.
Entro
em casa e todos já estão na mesa do café. Virgilio pergunta: alimentou os animais? Para espanto da
família uma explosão minha: animal é
você. Eu alimentei cavalos. Não
animais. E você é um médico que não
entende deles. O casco de Dream está péssimo. Ele me cont... Paro a tempo. Ele
o que? pergunta Virgilio. Ele..,ele...
está mancando. Mesmo aquela família tão fora de esquadro jamais acreditaria
que conversamos, eu e os cavalos. Volto-me para Mamãe: vem comigo buscar os jornais. Gaucho precisa se exercitar. Fico
radiante com resposta positiva e faço um pedido absurdo que deixa todos de boca
aberta: me faz um favor. Tosse e espirra de
vez em quando no caminho. Ouço a voz de minha prima: embirutou.
E,
vem o mágico olhar de papai que sempre sabe o que vai por dentro de mim,
acompanhado de um “deixa ela. Ela sabe por que está falando isso”. Ele sabe! Preciso
contar isto a Dream. Ele vai adorar. Podemos conversar os três.
2013
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