Espanto-me
com o comentário da prima: naquele tempo você pensava assim. O tom era
tão afirmativo que me acovardei e até concordei. Mas a verdade é que não tinha
eu a menor ideia do que eu pensava “naquele tempo”. Mesmo que num lampejo
viesse à memória este pensar, seria verdade? Seria eu capaz de reproduzir aos
oitenta, vésperas de oitenta um, o pensamento dos quinze? Acho que não. A
lembrança viria modificada por um modo de pensar atual, tão diferente daquele
antigo.
Dos
quinze aos oitenta é monumental a transformação que ocorre. Não estou me
referindo àquela obvia e inexorável transformação física. Falo de outra que se
dá lá na cabeça ou na alma, sei lá eu. Não existe neste caso o binômio
“melhor/pior”. Impossível um juízo de valor. É tão somenos, diferente. Isto faz
com que qualquer um destes extremos seja possível. E, cá pra nós, os dois
acabam existindo mesmo. Mas a dificuldade vai muito além do que se pensava. Até
os fatos adquirem outra versão. E as pessoas, paisagens e coisas adquirem outro
aspecto. O que havia de mais substantivo no então, sofre mudanças radicais no
hoje.
Lembro-me
de pessoas que, segundo meus pais, eu não conheci. Diziam eles que a lembrança
vinha do que me contaram. Pode até ser, mas Seu Tadeu, segundo marido de minha
bisavó, tem até cheiro para mim. E Vovô de Uva (meu bisavô) me levou à praia
sim, embora tenham me afirmado que jamais deixariam que isto ocorresse. Ele já
tinha noventa anos quando nasci e de fato não seria razoável que aos noventa e
quatro fossemos ambos curtir um banho de mar no Arpoador, onde se localizava a
casa dele (naquela época um deserto). Mas eu me lembro nitidamente desta
aventura: só estávamos os dois na praia, ele me comprou um picolé e estava com
um roupão azul!
Apenas
em um dos casos meus pais, provavelmente, tinham razão: a lembrança do
nascimento de minha prima (mais velha do que eu) tão claro em minha memória!
Seria de fato impossível, mas o fato é que me lembro! Por estas e por outras eu
seria incapaz de escrever minha biografia. Seria tudo uma deslavada mentira.
Uma obra de ficção. Mas cá pra nós: isto não deve acontecer só comigo. Vai ver
todas as biografias tem uma grande parte de ficção. Vem de longe a voz de meu
pai: não liga muito para o que as pessoas dizem. Repara bem no que fazem. É
bem mais verdade. E não é que estejam mentindo. É que o que dizem reflete o que
gostariam que fosse, e o que fazem é o que realmente acontece lá dentro delas.
E
como é que vou me lembrar do que eu fazia e, sobretudo por que fazia? O dentro
de mim, agora, é outro. Tão outro que – acho - não me reconheceria se por
mágica me defrontasse comigo aos quinze anos. Outro problema é que não existe
em minha vida memorial uma seqüência ininterrupta de fatos e acontecimentos. A
memória dá saltos enormes e, ao mesmo tempo, é capaz de rever alguns dias e até
horas nos mínimos detalhes. Uma maluquice.
Por
que raios eu me lembro do estampado do vestido que Madame Jacobina, a
professora de francês, estava usando no dia em que eu surrupiei a foto do irmão
de uma colega por quem havia me apaixonado perdida e desesperançadamente? Não tem o menor sentido. E por que não me
lembro do professor de história se me lembro de todos os outros? O que teria
feito este sujeito para que eu o varresse da memória? Lembro-me de todos os
nomes da lista de chamada do ginásio no Bennett e apenas de quatro colegas do
científico do Andrews cursado bem depois. Sei a localização (árvore) exata de
cada ninho de João de Barro que havia no sítio em Miguel Pereira. Aliás,
daquele Paraíso a memória é farta. O estranho é que o tempo escamoteou muito
dos meses em que eu lá não estava na adolescência. O que é que eu fazia, o que
é que pensava, o que queria, de março a junho e de agosto a dezembro quando não
estava no sítio?
Do
tempo em que servi na FAB (não se espantem. Naquele tempo as senhoras
“serviam”) lacunas enormes se abrem. No entanto detalhes ínfimos da
manifestação de minha personalidade clumsy
desta época, ficaram intactos. Sei lá por que este meu lado
desastrado foi tão presente em meu período militar. Uma revolta à disciplina,
talvez? Entre os trinta e oito anos que medeiam entre meu nascimento e minha
fixação para todo sempre – espero - neste Humaitá, morei em vinte casas em
cidades diferentes! O que dá em média 1,9 anos por casa. E isto saracoteando
mundo afora. Pois bem: a memória nítida de todas existe embora pareça impossível
a lembrança das duas primeiras. Segundo meus pais, não parece impossível:
é impossível mesmo.
Vem
a idéia maluca de que eu gostaria, gostaria muito, de conhecer minha vida de
cabo a rabo. Devo ter sido protagonista, coadjuvante ou observadora de fatos e
acontecimentos que valeria a pena lembrar. Agora entendo a razão do porque do
título Memórias, ao invés de Biografia. É bem mais verdadeiro. Memórias, quem
sabe eu seria capaz de escrever. Mas não vou poder fazê-lo. Pablo Neruda, já
fez há tempos. Deu a elas, às memórias, o único título que eu gostaria de dar. Porque
mesmo com lacunas imensas, minhas lembranças fragmentadas atestam: Confesso que
Vivi!
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