Maria Clara me chama: olha só, vovó, o que eu estou desenhando. Chamado de neta é ordem e lá está a menina, olhos brilhantes, grudados na tela do monitor.
Observo preocupada: o verbo “desenhar” não se aplica. Na verdade ela
apenas movimenta o mouse sobre uma infinidade de opções oferecidas para montar
uma Barbie: cabelos, olhos, boca, roupa, sapatos e mais uma infinidade de
detalhes.
Sei que Maria Clara espera uma apreciação elogiosa e tenho
dificuldade em fazê-la. Saio pela tangente: gosto
mais dos desenhos que você faz no papel com seus lápis de cor. Ela se espanta: esse é muito mais bonito. vó. A Tia me mostrou como é que faz no
computador. Vai dar pé explicar: esse
ai todo mundo faz igual no computador. Não é seu desenho. Não é desenho de
ninguém. O seu, aquele que você faz e
que me dá de presente, só você é capaz de fazer. É mil vezes mais bonito.
Inútil. Ela continua a “desenhar” encantada e eu me remeto há
1955, quando microcomputador pessoal era um sonho tipo Julio Verne, e matriculei
meu filho mais velho no então maternal. Um dia voltou triste para casa: a Tia
havia “corrigido” um desenho que havia feito. Tratava-se de um menino: duas
bolas, uma grande e uma pequena com retas no lugar de braços, pernas e dedos.
Mais acima um barco. Aquele típico desenhado por crianças. A bola menor,
representando o rosto, exibia um traço para boca, duas bolas menores para as
orelhas e um traço para o nariz. O menino não tinha olhos. E não os tinha
porque estes estavam colocados no costado do barco. Em cima dos olhos o “x”
vermelho da Tia que não se deu conta de que ele havia representado, lindamente,
o menino olhando o barco! De que outro jeito podia uma criança de quatro anos
direcionar o olhar do menino para o barco? Elogiei, elogie muito e expliquei: vai ver a Tia não prestou atenção: Sabe de uma coisa, Rogério? Desenhos que a
gente faz nunca estão errados.
Decidi que ele não voltaria para esta escola. Outra deveria
haver com uma Tia que soubesse das coisas. Fui ao colégio explicar. Sei lá se
me entenderam. Creio que não pela reação da Tia que provavelmente continuou a
“corrigir” desenhos a torto e a direito. Isto foi meu primeiro incidente em
colégios de meus filhos. Muitos outros ocorreram, sendo o mais grave o de uma
professora de matemática, também de Rogério. Ela o fez decorar a forma de
extrair o Máximo Divisor Comum.
Nós estávamos na Bahia e para Rogério este cálculo
intitulava-se ME-DE-CÊ. E eis que diante de minha reclamação de que ele não
tinha a menor ideia do que estava fazendo, a professora responde: não tem importância! ME-DE-CÊ não serve para
nada mesmo! E nova troca de colégio se deu.
Ao longo do primário de meus filhos os incidentes se
multiplicaram. Vejo com tristeza, pelas últimas notícias, que a qualidade do
ensino público não melhorou. Ao contrário parece pior. Possivelmente os
professores são os que menor culpa tem, também vitimas que são do ensino que
lhes foi dado. Além disto, ganham mal e alguns até arriscam a vida para dar
aula. As escolas são mal aparelhadas e pouca ou nenhuma ajuda vem dos pais,
também despreparados e atormentados por um dia-a-dia terrível.
De 1937 a 1941 cursei uma excelente escola pública. Nunca
decorei tabuada. O método usado por D. Luiza (não era “tia” naquele tempo) me
fez entendê-la e, mais que isto, “visualizá-la” tornando concreto o abstrato
dos números. Consistia num saquinho cheio de bolas de gude, daquelas mínimas
que chamávamos “olhinhos”. A gente punha a mão dentro do saco uma vez e tirava
duas bolas que deixava em cima da mesa, juntas. E então ela perguntava: quantas vezes vocês puseram a mão dentro do
saco? E a classe respondia: uma! E quantas bolas tiraram? E vinha o coro:
duas. E vinha a voz de D, Luiza: olhem as duas bolas na juntinhas na mesa.
Isto que dizer que uma vez duas bolas é igual a duas bolas. Vamos ver o que
acontece quando a gente põe duas vezes a mão no saco e tira duas bolas de cada
vez. E em cima da mesa ia surgindo, sólido, o resultado da tabuada de dois,
arrumado em grupos de duas bolinhas. Lembro-me que dias depois a turma foi
capaz de construir, sem ajuda, a tabuada de cinco. Foram moles as restantes.
Noções de conjunto ficaram evidentes na coleção de xícaras,
pires e colheres (de galalite!) em quantidades diferentes. Estes mesmos objetos
já nos haviam dado, no primeiro ano, noção de quantidade. Mais, menos e igual,
como dizíamos. Há poucos dias foi divulgado que alunos, no Brasil inteiro, não
compreendem o texto que lêem e têm um péssimo desempenho em matemática.
De novo a memória acorda com D. Luiza nos fazendo contar, uns
para os outros, a pequena história que havíamos lido como dever de casa
primorosamente escrita numa única folha na letra caprichada de D. Luiza. O
texto era diferente para cada um e estimulada por D. Luiza a classe metralhava
de perguntas o contador do dia. Deslindávamos assim personagens e enredo. Ao
final cada um tinha que se manifestar dizendo o que havia achado da história e
do comportamento dos personagens e em críticos nos tornávamos.
Hoje, as Tias incluídas digitalmente, preferem a Barbie e vai
ver também corrigem meninos sem olhos e nunca, nunca mesmo, dividem um teto em
quadrados perfeitos com bandeirinhas de São João usando o MÊ-DÊ-CÊ. Caramba! Nossas crianças estão em perigo!
2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário