quarta-feira, janeiro 08, 2014

INFELIZ SOCORRO

Seria tão bom se fossem expurgados de minha memória todos os episódios desastrados em sou eu a protagonista. Infelizmente não é assim que as coisas se passam. Ao conferir a relação das crônicas que já foram publicadas uma única me induz a releitura! Falava eu nela de um amigo de infância a quem fiz uma falseta que me valeria a condenação no Juízo Final.  A partir daí entrei em marcha à ré e passei a reviver o convívio com este amigo que há muito partiu, deixando saudades e muito boas lembranças.

Ai é que pegou! As boas lembranças ficaram todas em segundo plano trazendo para frente mais uma falseta por mim feita a ele. Uma que eu bem gostaria ficasse no esquecimento. Vai daí que terá que ser exorcizada. Ele, este amigo, nos pregou um enorme susto lá pelo final dos anos setenta. Sentindo-se mal, muito mal mesmo, demandou um hospital e lá, ao dar entrada, no saguão, teve uma parada cardíaca... e nasceu de novo. Naquele exato momento um aparato ressuscitador transitava pelo mesmo saguão empurrado por uma enfermeira que prontamente passou a dar furiosos choques em meu amigo que ressurgiu dos mortos. Um espanto de sorte!

Qualquer pessoa ficaria radiante com esta coincidência salvadora, mas não meu amigo que era uma pessoa “pra baixo” como ele só. No dia seguinte ao evento salvador ele me telefonou do hospital queixando-se da vida, da quantidade de exames a que estava sendo submetido, das dores, do desconforto e que mais sei eu. Terminou a ligação com a frase que funcionou como gatilho para minha infeliz intervenção que se deu logo em seguida: por favor. Venha me ver. Só você para me animar um pouco! Assim incentivada lá fui eu dando tratos à bola, procurando o que dizer ou fazer para animá-lo. Tarefa que desde sempre achei difícil por que ele reagia mal a qualquer incentivo.

Ao chegar ao hospital, errei de andar e fui parar no da maternidade e onde vi pendurado na porta de alguns quartos, um cartão de gosto duvidoso: representava uma cegonha com um risonho bebê no bico tendo em baixo os dizeres: SOU UM  .... CHEGUEI ONTEM COM O PESO DE ..... MEU PAPAI É .... MINHA MAMÃE É......Os pontinhos eram preenchidos com o sexo do recém chegado, seu peso e nomes da mamãe e do papai. Vi ali a possibilidade de alegrar meu amigo. Uma das enfermeiras que por ali transitava, ao me ver embasbacada frente ao cartão, informou que eu poderia comprá-lo na lojinha situada no saguão do hospital. Coisa que imediatamente fiz preenchendo os pontinhos com o sexo, o peso de meu amigo acompanhados do nome dos pais.

Encantada, parti para o quarto de meu doente. Pendurei o desgraçado cartão na porta e entrei sorrindo já imaginando a cena que se daria quando da chegada da próxima visita que certamente entraria às gargalhadas. De fato poucos minutos depois adentra ao quarto o escritor e médico Pedro Nava, amigo de nossas duas famílias. Sacudido pelo riso ele, em palavras entrecortadas, falava da gracinha e de como meu amigo tinha senso de humor, imaginando que o próprio havia cometido aquela barbaridade.

Sem entender bem o que se passava este me pediu que apanhasse o cartão. Ao vê-lo começa a vociferar palavrões horríveis lançando ameaças terríveis ao autor da infeliz brincadeira, segundo ele de extremo mau gosto e desrespeito. Encolhi-me apavorada quando ele me perguntou: você não viu quando entrou? Por que não me disse? Como é que você pôde deixar que outras pessoas vissem?! Possuída por abjeta covardia, declarei que sabia que ele iria se aborrecer e tinha achado melhor não dizer. Ao que ele retruca que mesmo assim eu poderia ter retirado e destruído o cartão.

Fui socorrida por Pedro Nava que resolveu divagar sobre a dificuldade que têm as pessoas em tomar a decisão acertada sobre o que seria ideal para outrem. Encantada com a possibilidade nos engajarmos numa discussão filosófica que afastasse meu amigo da procura do autor, passei a desenvolver uma complicada teoria sobre o assunto. Mas meu amigo insistia em comentar o fato: trata-se de alguém mau caráter e que quer me ridicularizar. Uma pessoa que me detesta e que veio aqui de propósito para isto. Atingindo um grau de abjeção inimaginável e indigno concordo com esta possibilidade mesmo sabendo que estava dando força a seu delírio de que havia pessoas que o detestavam.

No final da visita deixei-o bem pior do que o havia encontrado. Dei carona a Pedro Nava e no caminho ele ainda fazia conjecturas sobre o autor do fato. Perguntou-me se eu tinha alguma ideia de quem poderia ter sido. E foi ai que cheguei ao auge do mau caratismo declarando: vai ver ele tem razão. Deve ser alguém que o detesta. E, coração em frangalhos, me julgando um monstro, escuto a resposta: Coitado! Ainda bem que nós, amigos, estivemos lá hoje!

2008

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