segunda-feira, janeiro 06, 2014

DO ÓDIO AO ESTADO DE GRAÇA


A manhã se anunciava desagradável. Em pleno inverno um calor absurdo transformaria num tormento a inadiável ida ao supermercado. A ladeira que fazia meus encantos anos atrás há muito havia se transformado num instrumento de tortura quando da volta para casa. Na verdade a ida também já que, ultimamente, a descida vinha se revelando complicada. Sabe-se lá por que causas o avançar da idade passou a imprimir uma catastrófica velocidade de descida nada compatível com o equilíbrio já muito prejudicado.

Uma sucessão de frases compostas pelo verbo odiar fez-se presente em meu pensamento ao descer: odeio ladeira; odeio supermercado; odeio calor; odeio água sanitária. Esta última afirmação dá inicio a uma sequência de profundo ódio a cada item da lista que relaciona o que deve ser comprado. Como corolário final penso irritada: odeio esquecer alguma coisa que com certeza não está na lista.

Num esforço inútil procuro identificar que alguma coisa é esta quando percebo um velho senhor caminhando em minha direção alguns metros à frente.  Muito velho mesmo. Arrastando as pernas na dificuldade da subida íngreme, ele anda rente ao muro da Casa de Saúde São José decorado por aquelas horríveis pintura que eu odeio também. O ódio agora se volta contra o velho: odeio constatar que provavelmente temos a mesma idade! Para meu espanto e horror o velho olhando fixamente para mim, de longe começa a gritar: Velhinha! Velhinha! Não acreditando no que escuto, por alguns segundos fico sem ação. É uma grosseria? O velho é maluco? Devo eu responder? Responder o quê?

Embora a velocidade de subida do ancião seja lenta quase parando, a minha de descida é vertiginosa. Resultado: defrontamo-nos antes que eu possa resolver como contratacar. Ao nos cruzarmos ele passa direto por mim absurdamente cantarolando incessante como num refrão infantil: velhinha-bonitinha-velhinha-botinitinha-velhinha-bo... Mais adiante já não o escuto e sou atacada de um acesso de riso incontrolável. Os passantes, já na esquina da Rua Humaitá, olham para mim penalizados. A expressão revela o que pensam: velha gaga!

Dentro do supermercado me vejo liberta de todos os ódios e de bem com a vida, até consigo completar a lista de compras com itens efetivamente esquecidos. Encontro com a irmã de uma muito querida amiga que me indica inúmeros produtos, segundo ela milagrosos, dos quais eu desconfiava quando via a propaganda (Nossa! Eu quase escrevi “reclame”, Ninguém mais diz isto!). Milagrosamente um enorme bem estar e uma estranha alegria surgiram, creio eu, graças à loucura do epíteto a mim conferido pelo velho senhor. Vai ver é também por esta razão que me vem uma vontade irresistível em adquirir os produtos recomendados.

Mas não para por ai meu estranho comportamento. Para coroar esta extraordinária manhã resolvo comer uma deliciosa pizza, como costumam ser as do supermercado Zona Sul. Isto às 11 horas da manhã e sem fome alguma! Sentada na mesinha saboreando o objeto de extemporânea gula, o velho não me sai da cabeça. Nunca o vi por aqui, Será que mora nas redondezas? Ninguém sobe a ladeira da Macedo Sobrinho se não demanda algum prédio da rua. É avô de alguém que mora por lá? Honesta, faço uma correção que se impõe na indagação: avô, não! Bisavô! Afinal eu sou uma. Com pena enfio na boca o último pedaço da excessiva pizza que na verdade era para duas pessoas.

Empanturrada e feliz dirijo-me à caixa empurrando o carrinho repleto de novas aquisições. Ai vem a urgência em experimentar os novos produtos adquiridos: olha, estes aqui eu vou levar na mão. O resto é para entrega. A moça se dirige para mim com um olhar de censura: são muito pesados. Uma pessoa idosa como a senhora não deve carregar tanto peso! E para o meu horror e indescritível espanto da moça da caixa escuto minha voz soando sem que eu a tenha comandado: não sou idosa, não!  Sou uma velhinha bonitinha!


Saio desabalada do supermercado, sem olhar para traz apavorada com o que disse, mas ao mesmo tempo achando tudo muito divertido. Coisa estranha: a ladeira não mais se revela penosa. O dia está lindo, o calor já não é tanto e a sacola não pesa nada. Em estado de graça antegozo o absurdo prazer que vou ter em passar a usar sabão líquido ao invés de sabão em pó como se isto fosse a maravilha das maravilhas. Em vão olho os passantes que descem a ladeira buscando achar entre eles o “meu” velho. O emprego do possessivo se impõe. Sinto que ele tornou-se íntimo, amigo e carinhoso. Quem sabe está retornando? Eu poderia convidá-lo para um café e iríamos nos encantar com as gracinhas que me contaria do bisneto que visitou. E eu contaria as de minha bisneta. Vai ver têm a mesma idade. Em vão: não consigo descobri-lo entre as pessoas que cruzam comigo sem me olhar, sem me ver. Vai ver não me acham bonitinha. Que pena! Que pena mesmo!

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