sexta-feira, janeiro 24, 2014

O ROSTO DA SAUDADE

De raro em raro os vejo. E, quando isto acontece o dia é marcado por uma pedra branca. No mais, são vistos através do cristal da saudade que revela o filme dos dias, meses e anos de um convívio divertido, sério, rico e, sobretudo, bom, muito bom. Hoje são cinco. Eram sete... Dois já se foram absurdamente jovens, mas estão sempre presentes nas conversas que temos nos almoços conseguimos marcar para nos ver. Todos homens. Naquele grupo, que existia dentro do grupo maior, fui a única mulher. Então éramos, na verdade, oito.  

Um observador desavisado os descreveria pelas identidades que guardam entre si: analistas de sistema, inteligentes, bonitos e...  completamente loucos. Mas eu os guardo dentro de mim pelas diferenças. Ricas, tão ricas. Para mim o ingresso no grupo se deu em 1972. Já lá estavam todos: o Chefe, o de cabelos vermelhos, o jovem impetuoso, o sedutor, o bon vivant, o mal humorado e o doublé de pastor e xerife. Não consigo vê-los como avós que hoje são. Em minha memória estão sempre jovens e sorrindo, mesmo o mal humorado. Vai ver para mim sempre sorriam! Vou, a seu tempo, falar de cada um deles. Mas hoje meu dia está povoado pela lembrança do xerife/pastor.   

Ao acordar, demandando a cozinha para o primeiro dos muitos cafezinhos do dia, meus olhos caíram sobre o livro: o dos cavalos.  Sei lá eu quanto tempo faz. Muito com certeza. Naquele tempo apesar do ótimo salário havia três filhos para criar e aquele livro ia ficar somente no desejo. Uma obra de arte. Tão lindo!  Edição reservada; exemplares numerados; fotos deslumbrantes! Voltando do almoço, devorando a vitrine da livraria, confesso ao amigo: ah! se eu pudesse, comprava! No dia seguinte ele aparece com um embrulho de jornal aos gritos: vê só o que encontrei lá em casa! O livro que você gostou! Fica com ele. Não ligo pra cavalos! 

Era também um grande mentiroso o meu amigo! Além de mentiroso e bom, muito, muito bom, era deliciosamente louco. Suas extraordinárias histórias ficaram na crônica da DSR. A Divisão de Sistemas de Informações Rurais do SERPRO, onde trabalhávamos. Uma das melhores ocorreu como conseqüência de uma reunião de cúpula. Naquela o Chefe resolveu, sabe-se lá por que, analisar severamente o comportamento nada ortodoxo de cada um de nós, solicitando correção de desvios e melhor postura. Ao meu amigo xerife foram exigidas três providências: chegar mais cedo; ser mais humilde e vestir-se condignamente. Aqui é necessário dizer que a censura à indumentária devia-se ao cinto com uma fivela de xerife que decorava a calça jeans, não podia mais velha, nem mais desbotada.

No dia seguinte fui, como sempre, a primeira a chegar e encontro nosso personagem sentado no corredor, frente a uma mesinha de datilógrafa e de terno e gravata! Interpelado explicou-me: sou humilde. O mais humilde. Não tenho nem sala, nem mesa. Mas me visto bem. Implorei em vão para que saísse dali. À medida que foram chegando todos tentavam demovê-lo e ele com extrema e muda humildade baixava a cabeça, mas dali não arredava pé. A humildade havia sido exigida, entre outras razões, pelo inexplicável desprezo que demonstrava por um analista de outra divisão. Um dia o Chefe solicitou que ele a este procurasse para discutir a solução de um problema técnico. Ele resistiu bravamente fornecendo argumentos absurdos e descabidos. Mas eis que o Chefe não transige e determina: não importa! Vá trocar umas idéias com ele.  Ao que meu querido amigo responde: Tá legal. Vou trocar, mas vou sair perdendo

Em meio à noite, o horror do telefonema: ele morreu.  Já nos tínhamos separado. A DSR não mais existia na empresa. Só mesmo para sempre e dentro de nós que naquela noite tão triste esperávamos pelo milagre. Com ele tudo era possível. Mesmo ressuscitar. Mas pela primeira vez ele nos falhou. E ninguém poderia entender por que nós desconsolados e abandonados rimos ao invés de chorar quando um lembrou: não acredito que nunca mais o vou ver chegar dando coice e rinchando. Era assim que ele anunciava a chegada, todas as manhãs.

Minha filha lembra-se de outra chegada: eu o havia feito portador de uma encomenda para ela e para meu genro que havia alugado uma casa de verão em Marica, onde ele também passava as férias. Ele não os conhecia e os deixou estarrecidos quando o viram irromper pela sala, tarde da noite, sem se fazer anunciar. Era visível que não se tratava de um malfeitor e meu genro no espanto exclamou: mas os cachorros não lhe morderam?!  E a isto ele respondeu também muito espantado: por que haveriam de me morder?! Eu não os mordi!

É... ele não mordia... Nunca. Talvez por isso gentes e bichos por ele se apaixonavam perdidamente. Como nós!
2008




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