De raro em raro os vejo. E, quando isto acontece o dia é
marcado por uma pedra branca. No mais, são vistos através do cristal da saudade
que revela o filme dos dias, meses e anos de um convívio divertido, sério, rico
e, sobretudo, bom, muito bom. Hoje são cinco. Eram sete... Dois já se foram
absurdamente jovens, mas estão sempre presentes nas conversas que temos nos almoços conseguimos marcar para nos ver. Todos homens. Naquele grupo, que existia
dentro do grupo maior, fui a única mulher. Então éramos, na verdade, oito.
Um observador desavisado os descreveria pelas identidades que
guardam entre si: analistas de sistema, inteligentes, bonitos e... completamente loucos. Mas eu os guardo dentro
de mim pelas diferenças. Ricas, tão ricas. Para mim o ingresso no grupo se deu
em 1972. Já lá estavam todos: o Chefe, o de cabelos vermelhos, o jovem
impetuoso, o sedutor, o bon vivant, o mal humorado e o doublé de pastor e
xerife. Não consigo vê-los como avós que hoje são. Em minha memória estão
sempre jovens e sorrindo, mesmo o mal humorado. Vai ver para mim sempre
sorriam! Vou, a seu tempo, falar de cada um deles. Mas hoje meu dia está povoado
pela lembrança do xerife/pastor.
Ao acordar, demandando a cozinha para o primeiro dos muitos cafezinhos
do dia, meus olhos caíram sobre o livro: o dos cavalos. Sei lá eu quanto tempo faz. Muito com
certeza. Naquele tempo apesar do ótimo salário havia três filhos para criar e
aquele livro ia ficar somente no desejo. Uma obra de arte. Tão lindo! Edição reservada; exemplares numerados; fotos
deslumbrantes! Voltando do almoço, devorando a vitrine da livraria, confesso ao
amigo: ah! se eu pudesse, comprava!
No dia seguinte ele aparece com um embrulho de jornal aos gritos: vê só o que encontrei lá em casa! O livro que
você gostou! Fica com ele. Não ligo pra cavalos!
Era também um grande mentiroso o meu amigo! Além de mentiroso
e bom, muito, muito bom, era deliciosamente louco. Suas extraordinárias
histórias ficaram na crônica da DSR. A Divisão de Sistemas de Informações
Rurais do SERPRO, onde trabalhávamos. Uma das melhores ocorreu como
conseqüência de uma reunião de cúpula. Naquela o Chefe resolveu, sabe-se lá por
que, analisar severamente o comportamento nada ortodoxo de cada um de nós,
solicitando correção de desvios e melhor postura. Ao meu amigo xerife foram
exigidas três providências: chegar mais cedo; ser mais humilde e vestir-se
condignamente. Aqui é necessário dizer que a censura à indumentária devia-se ao
cinto com uma fivela de xerife que decorava a calça jeans, não podia mais
velha, nem mais desbotada.
No dia seguinte fui, como sempre, a primeira a chegar e
encontro nosso personagem sentado no corredor, frente a uma mesinha de
datilógrafa e de terno e gravata! Interpelado explicou-me: sou humilde. O mais humilde. Não tenho nem sala, nem mesa. Mas me visto bem. Implorei em vão para
que saísse dali. À medida que foram chegando todos tentavam demovê-lo e ele com
extrema e muda humildade baixava a cabeça, mas dali não arredava pé. A
humildade havia sido exigida, entre outras razões, pelo inexplicável desprezo
que demonstrava por um analista de outra divisão. Um dia o Chefe solicitou que
ele a este procurasse para discutir a solução de um problema técnico. Ele
resistiu bravamente fornecendo argumentos absurdos e descabidos. Mas eis que o Chefe não transige e determina: não importa! Vá trocar umas idéias com ele.
Ao que meu querido amigo responde: Tá
legal. Vou trocar, mas vou sair perdendo!
Em meio à noite, o horror do telefonema: ele morreu. Já nos tínhamos
separado. A DSR não mais existia na empresa. Só mesmo para sempre e dentro de
nós que naquela noite tão triste esperávamos pelo milagre. Com ele tudo era
possível. Mesmo ressuscitar. Mas pela primeira vez ele nos falhou. E ninguém
poderia entender por que nós desconsolados e abandonados rimos ao invés de
chorar quando um lembrou: não acredito
que nunca mais o vou ver chegar dando coice e rinchando. Era assim que ele
anunciava a chegada, todas as manhãs.
Minha filha lembra-se de outra chegada: eu o havia feito
portador de uma encomenda para ela e para meu genro que havia alugado uma casa
de verão em Marica, onde ele também passava as férias. Ele não os conhecia e os
deixou estarrecidos quando o viram irromper pela sala, tarde da noite, sem se
fazer anunciar. Era visível que não se tratava de um malfeitor e meu genro no
espanto exclamou: mas os cachorros não lhe morderam?! E a isto ele respondeu também muito
espantado: por que haveriam de me
morder?! Eu não os mordi!
É... ele não mordia... Nunca. Talvez por isso gentes e bichos
por ele se apaixonavam perdidamente. Como nós!
2008
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