Só hoje me dou conta de
que avó, pais e tios não nos contavam histórias de fadas. Estas, fomos
estimulados a ler, tão logo aprendemos. Os personagens e peripécias que nos
fascinavam, desde muito pequenos, saiam da vida real e até hoje tenho a
sensação de havê-los conhecido de tão bem descritos eram. Faziam eles parte de
nosso cotidiano já que citados sempre que alguma ocorrência justificava o
bordão que a cada um deles caracterizava.
E assim era com o
Coronel Peixoto que ingressou em nossas vidas muitos anos depois de falecido.
Era ele dono da fazenda lindeira a do Campinho, em São José do Barreiro, junto
à Serra da Bocaina, propriedade de meu bisavô materno – Vovô de Uva – como eu o
chamava. Segundo a história o Coronel era uma doce pessoa: tímido, falava
manso, em tom baixo e jamais dele se ouviu uma imprecação ou um destempero. Sua
mulher, D. Marocas, era completamente diferente. Era descrita com uma fúria em
saias pronta a explodir a qualquer momento. Dona de um vozeirão de mulher macho
sim senhor, desancava Deus e o mundo por da cá aquela palha. Ao que parece, estranhamente,
entendiam-se as mil maravilhas os dois, numa complementaridade e harmonia de
fazer inveja.
Pois bem: todas as vezes
que algum fato desagradável ocorria ou alguém saia da linha o Coronel, incapaz
de reagir, chamava a mulher e dizia em sua fala doce: “Indiguina”, Marocas! E Marocas, leal porta-voz do marido, soltava
os cachorros deblaterando aos berros e apavorando os faltosos. Diziam que
partia até para a agressão física! Esta convocação à guerra tornou-se um dito
comum que era usado por alguém da família, como um estopim, para por fogo na
indignação geral sempre que algum fato o merecesse.
E foi este grito que me
escapou recentemente quando frente à tela escutei pasma o Ministro do Planejamento
– Paulo Bernardo – declarar que dado o vulto do orçamento do DNIT seria
impossível e absurdo esperar que não ocorressem “erros”! Caramba! Gostaria de
entender a lógica da declaração. O roubo é compreensível e quem sabe até
justificável quando se trata de verba vultosa? É isto?! Numa analogia triste
vejo que, nós brasileiros, somos como o Coronel Peixoto: doces demais, tímidos
demais. Ainda que percebendo tudo e presos de uma enorme indignação somos
incapazes de reagir. Assistimos há anos aos escândalos mais deslavados, aos
comportamentos mais execráveis; freqüentamos os mesmos lugares e andamos nas
mesmas calçadas em que transitam ladrões, mentirosos e corruptos sem nos vexar
por isto; deixamo-nos espoliar sabendo que os impostos que pagamos enriquecem aqueles
que os sonegam; trabalhamos muito e duramente para pagar altíssimos salários
sustentando mordomias de senadores e deputados (os mais bem pagos do mundo) que
deveriam trabalhar por nós; e nada fazemos.
Que falta nos faz D.
Marocas! Ressuscitado em nós o Coronel, somos capazes de perceber o horror, mas
não temos ao lado sua maravilhosa esposa. Estivesse ela presente, botaria a
boca no mundo, exigindo mudanças, cobrando responsabilidades. Por que D.
Marocas era muito bem sucedida suas intervenções, segundo me contaram.
Acovardados pelo ímpeto de violência, os por ela agredidos, entravam na linha.
O correspondente do El
Pais, Juan Arias, fez às vezes do Coronel Peixoto: em um excelente artigo se
mostra espantado pela inexistência entre nós desta senhora que tanta falta nos
faz. E é mesmo um espanto que sejamos
capazes de lutar por minorias sem encontrar forças para fazê-lo pela maioria!
Maioria que inclui nossos filhos, nossos netos e agora para mim, nossos
bisnetos. Será que não vale à pena? Será que não merecem, estes nossos
descendentes, que nos movimentemos pelo voto para deixar como legado um Brasil
melhor, mais bonito, mais justo? Será que este País tão belo e tão bem dotado
não merece isto? Por que estamos paralisados, apenas assistindo?
Ah! D. Marocas, que
falta nos faz a senhora! Sonho que um dia há de surgir entre nós aquele ou
aquela de quem possamos escutar o grito: “indiguina”,
Brasil!
2010
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