Só há
poucos dias percebi: o presente do indicativo não se aplica à terceira idade.
Mas não se aplica mesmo! Com a maior sem cerimônia, as frases são lançadas,
como grosserias não intencionais: Como
você era linda!, diz o namorado da neta, sorridente, foto na mão, na
certeza do elogio; você saía
sozinha? pergunta a outra neta; mamãe
era muito alegre!, lembra-se o filho. Bolas! Eu talvez não seja mais
tão linda, mas saio sozinha! Não sei se fui tão alegre, mas, com
certeza sou até pra cima! Hoje! Agora! Mas não adianta. Um desfilar de
era, tinha, gostava, fazia, lia, pensava, comia, pontua o meu dia-a-dia. Um
espanto! Como é que eu sou, tenho, faço, penso, como, bebo e ninguém percebe?!
Mas existe coisa pior! Existe o diminutivo. De repente fiquei “ïnha”. Sobretudo
para balconistas. Sabe-se Deus por que, tudo que quero comprar tem seu tamanho
carinhosa e cretinamente reduzido: remedinho, sapatinho, vestidinho, bolsinha e
que mais seja. O tom beira o tatibitate e soa mais alto porque, provavelmente,
pensam que sou surda! Ontem o caixa do banco me pediu que digitasse a
“senhazinha”. E existe uma, menor, mais reduzida, para pessoas como eu?! E olha
que nem estava na fila dos idosos - a outra estava menor! E a familiaridade? Ah,
a familiaridade! Todos se julgam com direito de me dirigir a palavra sem que os
conheça! E existem até os que me tocam, amáveis, tirando um fio de cabelo que se
grudou à roupa, caído, como muitos o têm feito ultimamente. E as verdades que
me dizem?! Há coisa de um ano, resolvi trocar o plano de saúde. Munida de uma
lista passei a telefonar para todos, em busca do melhor custo/benefício. Na
verdade, nos tempos que correm, estava mais em busca do melhor custo qualquer
que fosse o benefício. E eis que um deles, na voz de robô da atendente me
informa que não me poderia ser dada a benesse de transferência sem carência,
como anunciado. Ingênua e sem pressentir o que estava por vir, perguntei o óbvio:
por que? A resposta veio curta e
grossa: porque, na sua idade, sua
expectativa de vida é muito pequena! Naquele momento poderia ser nenhuma se
sofresse de algum mal cardíaco. Em sua certeza a mocinha nem me deu o direito
da exceção, tornando a frase mais genérica. Era da minha expectativa de
vida mesmo. E tem mais! Fui alertada por um amigo, sobre outro fato. E olha que esse amigo é apenas quase lá, quer
dizer, ainda não instalado de mala e cuia na terceira idade. Talvez já tenha a
mala ou a cuia pousada por perto da fronteira. Mas certamente não as duas!
Lembro-me muito bem: quando era um menino, eu era “mocinha”. Pois é, esse amigo
quase lá, me falou do “olhar”. O olhar dos iguais! Os iguais terceira idade,
quando se cruzam na rua. É um olhar rápido, mas profundo, carregado de
significância. Olhar dos que se reconhecem numa situação especial, num mundo a
parte, irmanados por algum mal a que estão condenados, pela idade. É! Esse
olhar existe. Eu já havia reparado. Eles, os iguais, além de lançarem “aquele
olhar”, carregado de um misterioso entendimento, semelhante ao de um músico de
jazz quando “entrega” a outro o improviso, também avaliam o porte e a
desenvoltura no andar do outro. E se estes forem julgados inadequados, isto é,
se você anda rápido, sem curvar, o olhar se reveste também de censura, quase
verbalizada no isto lá são modos?! E
tudo isto ocorre do dia para noite. Um dia você é e no dia seguinte você
era. Agora entendo porque algumas pessoas, numa tentativa vã, é verdade,
procuram desesperadamente, aparentar menos idade. Elas não suportam! E, cá pra
nós, põe insuportável nisso! Fazer o que? Há momentos que estas constatações me
levam ao delírio. Nunca fui gregária, mas eis que me vem a revolta que cria o
brado conclamatório: brasileiros de
terceira idade! Uni-vos! Poderíamos, quem sabe, iniciar uma reação, usando
e abusando do presente do indicativo, rejeitando todos os diminutivos e
mandando um tapa certeiro na mão que tira o fio de cabelo que se grudou a nossa
roupa. É verdade que vai se correr o perigo de passar por esclerosados ou, no
mínimo, por excêntricos. Porque depois se atinge a terceira idade deixa-se de
ser sem modos ou mal educados. A opção é só entre a esclerose e excentricidade.
Mas a classe não é muito unida. Uma pena. A maioria aceita o tempo do verbo no passado,
o diminutivo, a mão cutucadora - e pasmem - até gosta disso que aceita como um
sinal de respeito. Mas quem sabe vale a pena tentar. Quem sabe poder-se-ia ter
bandeira, sindicato, hino! Um hino seria o fino! Um hino que perturbasse. Que,
hermético, intrigasse a todos e ao mesmo tempo se adequasse ao excêntrico
atribuído. E me vem à cabeça, incessante, a cantilena “nonsense” que ouvia,
muito pequena, não sei se da avó, da mãe ou das tias:
Tempo será de
miciocó!
Laranja da china,
tabaco em pó.
O pinto que pia:
piri-pi-piu.
O galo que canta:
corococó.
Morreu sua tia, ficou
sua avó.
Quem é o durão aqui?
Sou eu, só, só!
Agrada-me
muito a avó ter “ficado” e, embora me entristeça com a morte da tia, tenho que
admitir que o fato de ser anterior a da avó, evidencia uma subversão da ordem
natural das coisas que, num simbolismo, é claro, é perfeitamente adequada à
revolta que proponho. Mas o que mais me encanta é que, além do pinto piar e do
galo cantar, este galinheiro existe no presente. E o durão está
aqui, no presente, e não é duro, nem durinho. É durão! Um audaz e desafiador
aumentativo! Está aqui de fato e de direito, indiscutível e conclusivo, no
misterioso tempo de miciocó.
2004
Importante: por uma falha que ainda não
conseguir sanar está sendo impossível visualizar possíveis comentários feitos
no blog. Agradeceria se, caso queiram comentar, o façam para meu endereço de
e-mail annadeassis@gmail.com
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