quinta-feira, julho 18, 2013

BRINCOS DE ARGOLA

Elas cantam. Com toda força dos pulmões, elas cantam. Dentro de cada uma, Elizeth Cardoso se manifesta. Não outra cantora. Porque de outra não sabem. Elizeth ficou no saudosismo de uma época em que eram jovens senhoras. Mas hoje, naquele ônibus que corta a estrada, a memória se faz expectativa: “O-Fim-De-Semana”! As informações vieram de todos os cantos. Tinha aquela amiga da amiga que conheceu , aquele senhor viúvo... Tinha o seu dentista que, em meio ao tratamento de canal, chocado, contou o caso da senhora encontrou o rapaz mais moço – escandalosamente mais moço - para quem hoje paga, entre outras facilidades, o tratamento de um idem canal... Bobo ele de ficar chocado! Tem motivo, não. Ela aprendeu com os netos: tudo é possível. Tudo pode!  Dizem que , mal se dorme de tanto o que fazer. No sábado - a Idália contou - foi até o dia amanhecer! Em volta do piano não sentiram a noite passar. Cantaram de tudo. Até tango! E ai – a Idália falou - tinha chocolate quente, lareira, vinho... Um grandor! Mas, sobretudo, Idália confidenciou sobre o pianista. Flertava com todas. Mas, numa hora em que ninguém estava olhando, lançou aquele olhar na direção dela, Idália, fazendo o coração disparar. Foi então que ele perguntou onde era o quarto dela. Se dava pra varanda... se era no anexo... Disfarçou, falou da vista, mas no fundo queria era mesmo saber a localização exata. Idália garantiu que se fez de ofendida. Mas na medida certa. Não podia ceder assim, sem mais nem menos, e ainda por cima havia a companheira de quarto, cafona que só ela, querendo se fazer jovem naquelas bermudas em pleno inverno! Mas conversaram muito naquela noite... A conversa foi um jogo de palavras, sutil, com duplo sentido... Mas de bom gosto. De muito bom gosto! E foi assim que a Idália percebeu que haveria uma outra vez. Ficou claro que ele precisava conhecê-la melhor antes de... enfim, antes de qualquer prosseguimento. Foi isto que ele insinuou quando se referiu aos feriados de São João. Mas Idália, a pobre Idália, não pôde vir: artrose, coitada. Mas ela, sim! Vai daí que está naquele ônibus que corta a noite, metida em seu novo conjunto que pinica, mas é lindo. Olha em torno. É a mais moça. Sem dúvida é a mais moça. Viúva hoje. Não é solteirona e nem um homem a deixou por outra mais jovem, como aconteceu com a maioria. A esta altura da viagem, já contaram tudo. Não sei como podem! Ela procurou ser generosa e não falou do casamento tão feliz. Tão feliz... Bom, nem tanto assim. Mas afinal melhor que muitos. Azevedo era muito calado. Nos últimos anos ficou mudo mesmo. Ela ficou surpresa quando, no velório, contaram que ele era a alegria das reuniões de aniversário de formatura da turma de 51. Parece que até contava piadas! E fazia versinhos engraçados sobre cada um! Disseram até que alguns eram apimentados! Que coisa! Nos últimos anos passava dias sem lhe dirigir palavra. A voz dele, ela só ouvia falando com os filhos, com os netos, e ao telefone. Mas, no todo, fora um casamento feliz e ele era educado. Muito educado. Nunca deixou faltar nada em casa, justiça seja feita!  Enquanto ele viveu, ela viveu para a casa, os filhos, os netos. Depois que Azevedo morreu, começou a surgir, insidiosa, aquela inquietação que se tornava presente após o término de cada capítulo das muitas novelas. Uma sensação indefinida, perturbadora, emocionante... Esta última palavra ela pensa com culpa. Esse negócio de emocionante, do jeito que ela pensa, tem alguma coisa de errado, de proibido. O relato secreto de Idália fez com que esta sensação tomasse uma forma sólida, objetiva. O fim de semana no Hotel Fazenda foi, durante muito tempo, o seu segredo. Perigava eles não entenderem... ou, o que seria pior, entenderem mal. Eles, eram os filhos, as noras (ai, as noras!) e os netos. Mas, vai daí, que tomou coragem e falou. Assim, de chofre, num dos almoços de sábado. Estranho! Não deram a menor importância. Nem mesmo quiseram saber mais. Só disseram assim: vai, mamãe! Vai, vovó! Vai, D. Sara! Estranho mesmo. Percebeu até uma esquisita reação de alívio, lá neles. Alívio de quê? Mas o fato é que ali estava ela, enfiada naquele conjunto que pinica, mas lindo, lindo. O motorista volta-se: estão chegando! O coração bate aflito. Dois senhores (um deles com um chapeuzinho engraçado) observam a chegada do ônibus. O do chapeuzinho olha para ela. Um olhar insistente. Intencional. Perturbador! Meu Deus! Já! Passa por ele pisando duro. Não pode deixar que perceba que ela percebeu. Também, não pode ser assim. No quarto hesita empacada no muda-não-muda de roupa para o jantar. Existem mais dois conjuntos na mala. Tão novos e tão lindos quanto aquele pinicante. Discretos, é verdade, mas muito bem cortados. Mudar de roupa pode parecer assim... assim... como é mesmo que os netos dizem? Over! É isto... Melhor não. Amanhã poderá surpreender com novas roupas. Hoje à noite se impõe certa discrição. Provavelmente todas vão se trocar e ela quer ser diferente.  Mas vai trocar os brincos... Isto sim. A alteração de um pequeno detalhe faz fino. Vai colocar os brincos de argola que comprou escondido. Foi uma extravagância. Nunca teria coragem de usá-los no Rio. Mas ali, eles, os brincos, são o atestado de sua ousadia! Os filhos, os netos e as noras (ai, as noras!) não perceberam nada. Mas é assim que ela está se sentindo: ousada. Muito ousada. Come pouco no jantar, perturbada pelos olhares, nada discretos, que o senhor do chapéu, agora sem chapéu, lança da mesa vizinha. Pelo menos teve o bom gosto de não ir logo sentando ao lado dela. É necessário um tempo. Sua vizinha fala sem parar, numa excitação nada condizente com a idade. Terminado o jantar, marca um ponto. Todas declaram não querer café. Não vão conseguir dormir se tomarem... Ela sorri, gentil, aceitando. Deixa-se ficar na mesa, saboreando o café que nunca toma à noite. “Ele” também tomou... e agora passa bem rente, ainda olhando. Tem certeza que o discreto sorriso é testemunho da percepção de sua jovialidade demonstrada pela aceitação do café. Ela vai andando pelo jardim na direção do som. Um piano acompanha vozes trêmulas, mas afinadas. A noite está linda. Tão estrelada... Há tempos não via as estrelas. Ora direis... Uma emoção gostosa toma conta dela. Sumiram os filhos, os netos e as noras. Ela é ela. Livre das lembranças, sentindo a vida que se anuncia bela, conduzida por milhares de estrelas. O som do piano é um chamado. Faz demorar o prazer. Pode ir quando quiser. E isto é uma sensação nova. Gostosa demais. Ela tem aonde ir e pode ir quando quiser. Mas este pensamento provoca urgência. E ela corre. Busca a aproximação da música, da vida. Entra com um sorriso discreto, estudado, e aí o choque! O homem do chapéu é o pianista! O pianista da Idália! Uma das senhoras, aquela simpática, faz um sinal amigável mostrando a cadeira vaga a seu lado. Ela se deixa cair, trêmula, pálida. A outra, solícita se aflige: está sentindo alguma coisa? Não! Nada! Nada, nada! Uma das senhoras toma o lugar no piano. Todas aplaudem e a cantoria recomeça com um piano bastante descontrolado na harmonia. Meu Deus! Ele está vindo para cá! Ele vai sentar-se a meu lado! Sentou! Vai falar! Falou! - É a primeira vez que te vejo aqui... - Já se levantando, e com um olhar gélido, digna em sua lealdade, ela fala, severa, grave e muito, muito triste: sou a melhor amiga da Idália!
Sob o olhar espantado do pianista, deixa a sala, escondendo das estrelas, as lágrimas que caem e caem. E ela entra no quarto buscando a lembrança dos filhos, netos e até das noras. Com gestos lentos, tira os brincos de argola e os deixa cair sobre a cama. 
2004

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