Elas cantam. Com toda força dos pulmões, elas cantam.
Dentro de cada uma, Elizeth Cardoso se manifesta. Não outra cantora. Porque de
outra não sabem. Elizeth ficou no saudosismo de uma época em que eram jovens
senhoras. Mas hoje, naquele ônibus que corta a estrada, a memória se faz
expectativa: “O-Fim-De-Semana”! As informações vieram de todos os cantos. Tinha
aquela amiga da amiga que conheceu lá, aquele senhor viúvo... Tinha o
seu dentista que, em meio ao tratamento de canal, chocado, contou o caso da senhora
lá encontrou o rapaz mais moço – escandalosamente mais moço - para quem
hoje paga, entre outras facilidades, o tratamento de um idem canal... Bobo ele
de ficar chocado! Tem motivo, não. Ela aprendeu com os netos: tudo é possível.
Tudo pode! Dizem que lá, mal se
dorme de tanto o que fazer. No sábado - a Idália contou - foi até o dia
amanhecer! Em volta do piano não sentiram a noite passar. Cantaram de tudo. Até
tango! E ai – a Idália falou - tinha chocolate quente, lareira, vinho... Um
grandor! Mas, sobretudo, Idália confidenciou sobre o pianista. Flertava com
todas. Mas, numa hora em que ninguém estava olhando, lançou aquele olhar
na direção dela, Idália, fazendo o coração disparar. Foi então que ele
perguntou onde era o quarto dela. Se dava pra varanda... se era no anexo...
Disfarçou, falou da vista, mas no fundo queria era mesmo saber a localização
exata. Idália garantiu que se fez de ofendida. Mas na medida certa. Não podia
ceder assim, sem mais nem menos, e ainda por cima havia a companheira de quarto,
cafona que só ela, querendo se fazer jovem naquelas bermudas em pleno inverno!
Mas conversaram muito naquela noite... A conversa foi um jogo de palavras,
sutil, com duplo sentido... Mas de bom gosto. De muito bom gosto! E foi assim
que a Idália percebeu que haveria uma outra vez. Ficou claro que ele precisava
conhecê-la melhor antes de... enfim, antes de qualquer prosseguimento. Foi isto
que ele insinuou quando se referiu aos feriados de São João. Mas Idália, a
pobre Idália, não pôde vir: artrose, coitada. Mas ela, sim! Vai daí que está
naquele ônibus que corta a noite, metida em seu novo conjunto que pinica, mas é
lindo. Olha em torno. É a mais moça. Sem dúvida é a mais moça. Viúva hoje. Não
é solteirona e nem um homem a deixou por outra mais jovem, como aconteceu com a
maioria. A esta altura da viagem, já contaram tudo. Não sei como podem! Ela
procurou ser generosa e não falou do casamento tão feliz. Tão feliz... Bom, nem
tanto assim. Mas afinal melhor que muitos. Azevedo era muito calado. Nos
últimos anos ficou mudo mesmo. Ela ficou surpresa quando, no velório, contaram
que ele era a alegria das reuniões de aniversário de formatura da turma de 51.
Parece que até contava piadas! E fazia versinhos engraçados sobre cada um!
Disseram até que alguns eram apimentados! Que coisa! Nos últimos anos passava
dias sem lhe dirigir palavra. A voz dele, ela só ouvia falando com os filhos,
com os netos, e ao telefone. Mas, no todo, fora um casamento feliz e ele era
educado. Muito educado. Nunca deixou faltar nada em casa, justiça seja
feita! Enquanto ele viveu, ela viveu
para a casa, os filhos, os netos. Depois que Azevedo morreu, começou a surgir,
insidiosa, aquela inquietação que se tornava presente após o término de cada
capítulo das muitas novelas. Uma sensação indefinida, perturbadora,
emocionante... Esta última palavra ela pensa com culpa. Esse negócio de
emocionante, do jeito que ela pensa, tem alguma coisa de errado, de proibido. O
relato secreto de Idália fez com que esta sensação tomasse uma forma sólida,
objetiva. O fim de semana no Hotel Fazenda foi, durante muito tempo, o seu
segredo. Perigava eles não entenderem... ou, o que seria pior, entenderem mal.
Eles, eram os filhos, as noras (ai, as noras!) e os netos. Mas, vai daí, que
tomou coragem e falou. Assim, de chofre, num dos almoços de sábado. Estranho!
Não deram a menor importância. Nem mesmo quiseram saber mais. Só disseram
assim: vai, mamãe! Vai, vovó! Vai, D. Sara! Estranho mesmo. Percebeu até uma
esquisita reação de alívio, lá neles. Alívio de quê? Mas o fato é que ali
estava ela, enfiada naquele conjunto que pinica, mas lindo, lindo. O motorista
volta-se: estão chegando! O coração bate aflito. Dois senhores (um deles com um
chapeuzinho engraçado) observam a chegada do ônibus. O do chapeuzinho olha para
ela. Um olhar insistente. Intencional. Perturbador! Meu Deus! Já! Passa por ele
pisando duro. Não pode deixar que perceba que ela percebeu. Também, não pode
ser assim. No quarto hesita empacada no muda-não-muda de roupa para o jantar.
Existem mais dois conjuntos na mala. Tão novos e tão lindos quanto aquele pinicante.
Discretos, é verdade, mas muito bem cortados. Mudar de roupa pode parecer
assim... assim... como é mesmo que os netos dizem? Over! É isto... Melhor não.
Amanhã poderá surpreender com novas roupas. Hoje à noite se impõe certa
discrição. Provavelmente todas vão se trocar e ela quer ser diferente. Mas vai trocar os brincos... Isto sim. A
alteração de um pequeno detalhe faz fino. Vai colocar os brincos de argola que
comprou escondido. Foi uma extravagância. Nunca teria coragem de usá-los no
Rio. Mas ali, eles, os brincos, são o atestado de sua ousadia! Os filhos, os
netos e as noras (ai, as noras!) não perceberam nada. Mas é assim que ela está
se sentindo: ousada. Muito ousada. Come pouco no jantar, perturbada pelos
olhares, nada discretos, que o senhor do chapéu, agora sem chapéu, lança da
mesa vizinha. Pelo menos teve o bom gosto de não ir logo sentando ao lado dela.
É necessário um tempo. Sua vizinha fala sem parar, numa excitação nada condizente
com a idade. Terminado o jantar, marca um ponto. Todas declaram não querer
café. Não vão conseguir dormir se tomarem... Ela sorri, gentil, aceitando.
Deixa-se ficar na mesa, saboreando o café que nunca toma à noite. “Ele” também
tomou... e agora passa bem rente, ainda olhando. Tem certeza que o discreto
sorriso é testemunho da percepção de sua jovialidade demonstrada pela aceitação
do café. Ela vai andando pelo jardim na direção do som. Um piano acompanha
vozes trêmulas, mas afinadas. A noite está linda. Tão estrelada... Há tempos
não via as estrelas. Ora direis... Uma emoção gostosa toma conta dela. Sumiram
os filhos, os netos e as noras. Ela é ela. Livre das lembranças, sentindo a
vida que se anuncia bela, conduzida por milhares de estrelas. O som do piano é
um chamado. Faz demorar o prazer. Pode ir quando quiser. E isto é uma sensação
nova. Gostosa demais. Ela tem aonde ir e pode ir quando quiser. Mas este
pensamento provoca urgência. E ela corre. Busca a aproximação da música, da
vida. Entra com um sorriso discreto, estudado, e aí o choque! O homem do chapéu
é o pianista! O pianista da Idália! Uma das senhoras, aquela simpática, faz um
sinal amigável mostrando a cadeira vaga a seu lado. Ela se deixa cair, trêmula,
pálida. A outra, solícita se aflige: está sentindo alguma coisa? Não! Nada!
Nada, nada! Uma das senhoras toma o lugar no piano. Todas aplaudem e a cantoria
recomeça com um piano bastante descontrolado na harmonia. Meu Deus! Ele está
vindo para cá! Ele vai sentar-se a meu lado! Sentou! Vai falar! Falou! - É a primeira vez que te vejo aqui... -
Já se levantando, e com um olhar gélido, digna em sua lealdade, ela fala,
severa, grave e muito, muito triste: sou
a melhor amiga da Idália!
Sob o
olhar espantado do pianista, deixa a sala, escondendo das estrelas, as lágrimas
que caem e caem. E ela entra no quarto buscando a lembrança dos filhos, netos e
até das noras. Com gestos lentos, tira os brincos de argola e os deixa cair
sobre a cama.
2004
Importante: por uma falha que ainda não
conseguir sanar está sendo impossível visualizar possíveis comentários feitos
no blog. Agradeço se, caso queiram comentar, o façam para meu endereço de
e-mail annadeassis@gmail.com.
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