As
expressões, a verbal e a do rosto, vêm carregadas de amargura: no meu tempo... O resto não quis ouvir.
Nunca escuto o que vem depois deste início infeliz. Quase sempre é alguma coisa
de depreciativo em relação ao momento, ao interlocutor ou ao comportamento de
alguém, a qualquer coisa que está ocorrendo e que no “seu” tempo não ocorria ou
ocorria diferente. Sei lá o que fazer desta informação... E depois - penso - o
passado nunca foi exatamente aquilo que se vê daqui. Do agora. O tempo é maroto
como ele só. Faz das suas, apronta. E, vai daí que se vê o que “foi” de um
jeito atenuado, aumentado, modificado, colorido, descolorido, distorcido e,
mais das vezes mentiroso. Mente-se pra caramba no passado. Mesmo sem querer -
embora alguns queiram muito - fabricando um tempo que não existiu. De qualquer
maneira o ponto de vista que se tinha “naquele tempo” era bem diferente. É... Me dizem volta e meia: no meu tempo.
Sempre achei esquisita essa maneira de falar. Vá lá! É apenas uma expressão. Todo mundo usa. E porque todo mundo usa acha-se que é assim
mesmo. Mas eu, não! Reclamo sempre. E aí, alguns pacientes interlocutores,
julgando-me um tanto apoucada, tentam explicar: isso quer dizer que... Não precisam explicar: eu sei o que quer
dizer. Mas estão dizendo mal. Já nos idos de Santo Agostinho, ficou claro que o
tempo não é de ninguém. Não existe nem “meu” tempo, nem “seu” tempo. É verdade
que o Santo andou dizendo isso por razões outras que não as minhas: eram os
juros, que o deixavam furioso com a indevida apropriação do tempo pelos homens,
alguns fazendo fortunas com o passar do. Segundo ele, o tempo só a Deus
pertence. E minha discordância nada tem a ver com a usura tão ferozmente
condenada pelo Santo. Mas, concedam-me até os não católicos, Santo Agostinho é
pessoa de peso para respaldar, ainda que numa forçação de barra, minha
divagação sobre o tempo. O tempo que passou ou o que resta (sempre me parece
pouco para o tanto que preciso), não deveria, como acontece, ser objeto de
tantos possessivos e de tantas e acacianas expressões. Espero ser desculpada
pelo trocadilho, mas o uso desses possessivos é uma perda de tempo! Estou me
referindo àquelas expressões terríveis, entregues numa bandeja, como um elogio
ou como um exorcismo à idade que, na verdade se tem: você tem uma cabeça tão moça!. Idade é a da cabeça! Gente! Uma
cabeça (qualquer) depois de viver anos e anos, presenciando e vivendo tudo que
presenciou e viveu, aprendendo, desaprendendo, acertando e errando, acumulando
memórias, estados de espírito, mudanças de ponto de vista, de gostos, de
hábitos e que mais sei eu, não consegue continuar moça! Caramba! Uma cabeça que
aos sessenta, setenta, e por aí vai (e por aí vou), continue moça deve ser
imbecil. Mocidade não é na cabeça. Graças a Deus, não! E a gente sente a idade
sim, na sucessão dos filhos, dos netos, das experiências boas e más, de tudo
que aconteceu e que tornou a gente como é hoje e naquela dorzinha que vem, uma
aqui e outra acolá, mesmo que não doentes. E isso são as idades que vai se
tendo, vida afora, minha gente! Todas vividas às nossas custas, num acrescentar
único para cada um. Um dia, lá pelos meus doze anos, perguntei a meu pai o que
era cultura. A resposta pareceu-me um tanto maluca: é tudo aquilo que fica depois que se esqueceu onde aprendeu. Ele
explicou, sim, mas naquela época não fez muito sentido. Foi só lá pela altura
dos trinta que começou a fazer e foi-se tornando cada vez mais verdade à medida
que os anos passavam. Ele falava da cultura de cada um. Aquela que se forma a
partir de tudo que vai se aprendendo, em qualquer canto. Por tudo que se vai
construindo. Com os livros, com as pessoas, com a observação dos olhos que vêem
e dos ouvidos que escutam. Este tudo entra dentro da gente, fazendo uma
confusão, misturando com o que já lá estava. Quando sai, sai de uma forma
diferente da que entrou porque a química da mistura é única para cada ser
humano. É esta a cultura de cada um. A menos, é verdade, que a pessoa seja um
“citador”. Os “citadores” são verdadeiras máquinas de repetição. Tudo que sai é
exatamente igual ao que entrou. Dá até para perceber o ponto e vírgula que é
coisa que eu tenho a maior dificuldade de perceber, mesmo lendo! Quando falam,
a gente chega até escutar o ranger da gaveta do arquivo interno que se abre
para liberar, no momento certo, a frase, a idéia, a palavra que não é sua, mas
que está lá, à espera de ser verbalizada, arquivada por assunto, autor e em
ordem alfabética! Às vezes chego a perceber o franzir da testa na procura
aflita do encaixe de uma citação no assunto do momento. Geralmente a frase, a
que antecede à citação, começa, invariavelmente com: já dizia... Meu Deus, se Montesquieu, Oscar Wilde ou o Barão de
Itararé “já diziam”, dizer de novo é dose. E o que é pior, é que é de novo, de
novo e de novo... O que importa é a cultura de cada um que se forma ao longo de
uma vida, numa salada em que Montesquieu, Oscar Wilde e Barão de Itararé,
misturam-se ao que se ouviu do primo Olegário. Daí, quanto mais velha a cabeça,
maior e mais verdadeira a cultura. Cabeça, com o tempo, pode (e deve) ficar
cada vez mais atual! E atualidade é uma coisa pra lá de boa. Afinal de contas
vivemos e convivemos nela, com qualquer idade que se tenha. Um velho atual é
com certeza um velho interessante. Um velho “moço”, me desculpem, é um grandíssimo
tolo. Mesmo porque só os moços sabem e podem ser moços. É um privilégio lá
deles, inerente e inalienável. Como é o meu de ser velha (para mim), idosa (no
banco) e terceira idade (no politicamente correto) e, acreditem, é um grande
privilégio.
2004
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