Episódio 1
Orgulhosa,
ela escutou o convite: o Ministro queria conhecê-la. Sua solução para a
automação no tratamento das informações daquele importante projeto era uma
inovação, na época. Merecia elogios. Aprontou-se, o mais executiva que
conseguiu com seu guarda-roupa nada ortodoxo e mandou-se para o ministério. Ali
sentada, frente ao Ministro emoldurado pela Bandeira e pelo retrato do
Presidente, deitou falação. Às folhas tantas o Ministro embatucou diante de uma
fórmula matemática. Ela levantou-se, rodeou a mesa e colocou-se em pé, a seu
lado, curvando-se para melhor explicar. Foi neste exato momento que sentiu
alguma coisa roçar no peito do pé, acondicionado numa meia Dior, como pedia a
ocasião (naquele tempo os Ministros eram importantíssimos! Acreditem os mais
jovens). Deus! Faça com que não tenha corrido um fio! Esta meia é caríssima! Um
discreto olhar revelou o horror! Uma barata instalara-se ali! O mundo desabou.
Tudo escureceu! Privação de sentidos total! Ao voltar a si, percebeu-se de
quatro, em cima da mesa do Ministro, aos gritos: Mata! Mata! A Bandeira e o Presidente da República ainda ladeavam o
Ministro que em pé, com uma frieza glacial, ordenou: a senhora desça! Procurando manter elegância, impossível pelo
quadrúpede recuo, escorregou mesa abaixo, obedecendo à ordem severa: a senhora está dispensada.
Episódio 2
Alguns
meses depois. No dia 29 de dezembro duas datilógrafas batiam furiosamente uma
Instrução Especial que teria efeitos tributários e que deveria para tanto, depois de
assinada pelo Ministro, ser publicada no DO, antes do dia 31. Naquele tempo não
existia xerox e o raio da Instrução era em 8 vias. As máquinas não eram
corretivas e as cópias eram feitas com carbono, naquelas folhas fininhas,
fininhas. Um trabalho cão. Terminaram já tarde. Alguém graduado tinha que ir
colher a assinatura do Ministro. Infelizmente o único alguém disponível era
ela. Fazer o quê? Disfarçou-se o mais que pode. Mas não surtiu efeito. Ao
entrar viu o horror do reconhecimento nos olhos do Ministro. Um exame discreto
para o chão garantiu a não existência de baratas por perto e ela postou-se ao
lado do Ministro virando as páginas para que ele rubricasse cada uma daquelas
malditas folhas de papel fino. A cada folha um sentimento de alívio. Nada iria
acontecer. Foi aí que surgiu, sabe-se lá de onde, um copeiro com uma bandeja
com xícaras de café. Cheias e pelando. Ao levantar o braço, alçando mais uma
folha, foi-se a bandeja pelos ares. As xícaras derramaram-se sobre o Ministro e
sobre a Instrução Especial, inundando-os de café. Em sua aflição ela tentou
secá-lo com as próprias folhas da Instrução enquanto ele se debatia aos tapas,
tentando dela se livrar. Escorraçada, ela retornou e confessou-se ao Presidente
e ao Diretor que entre risos e censuras fizeram com que duas datilógrafas
passassem a noite em claro (nunca mais falaram com ela, as duas).
Episódio 3
Alguns
meses mais se passaram e ela foi chamada ao Gabinete do Presidente. O Diretor
também estava presente. Solenes eles informaram que a Missão Francesa viria
visitar a instituição, a convite do Ministro. Ela, em hipótese alguma, deveria
estar presente. Que fosse a praia, ao cinema, onde bem lhe desse na telha, mas
sob pretexto algum deveria aparecer nas imediações do prédio, no dia da visita.
Enfim alguma coisa de bom havia resultado dos incidentes. O acúmulo de trabalho
lhe tirava até os fins de semana. Uma trégua seria mais que bem vinda. No dia
da visita arrebanhou os filhos: vamos à
praia! Se eu vou faltar ao trabalho, vocês vão faltar colégio! Uma heresia
nunca vista! Naquele tempo ela não tinha telefone. Era difícil conseguir. Era o
número 1.144 da fila para obtê-lo! A campainha da porta revelou um colega e o prenúncio de
tragédia: o interprete havia quebrado a perna num acidente de carro. Que
conhecesse o projeto e falasse francês só mesmo ela. Tremeu! Uma hora
depois se viu numa sala, sentada como um suspeito em interrogatório, acuada
pelo Diretor e pelo Presidente que de pé, ferozes, gritavam: fique o mais afastada possível! Imóvel. Aja
como um robô! O olhar do Ministro,
ao vê-la, revelou pânico. Ela engoliu em seco e com uma voz trêmula começou a
traduzir e verter as diversas manifestações. Aos poucos foi se acalmando. É
claro que nada iria acontecer. Até o momento em que um idiota qualquer sugeriu
que o Ministro mostrasse ao General Francês, o CPD. Naquele tempo computadores
eram raridades dignas de serem exibidas. A escada que conduzia ao CPD não tinha
o espelho dos degraus. O Ministro, ao lado do General, começou a descida. Ela
veio atrás, traduzindo, furiosamente. E... eis que o salto de seu sapato pisa
fora do degrau e ela tomba para frente. Falta de outro apoio agarra-se às
costas... do Ministro. Alguém que estava atrás impede sua queda. Mas ninguém,
ninguém mesmo, impede a do Ministro que rola os felizmente poucos degraus que
faltavam. Confusão total. Todos se precipitaram para ajudar o Ministro a
recompor-se da queda. Ele levanta-se rubro de raiva gritando: esta mulher é uma catástrofe! Demita-se!
Epílogo
O
Diretor e o Presidente não cumpriram a ordem e ela ficou escondida, impedida de
participar de qualquer evento em que o Ministro pudesse estar presente. Já se
passaram anos, muitos anos. O trauma causado não a abandonou, nem com seis anos
de terapia. O Ministro, agora bem velhinho, às vezes vem ao Rio. Quando ela vê
seu nome nos jornais recusa-se a sair de casa. Não importa o que tenha que
fazer. Tranca-se no quarto enquanto ele permanece na cidade. Tem certeza que se
pisar fora de casa, vai topar com ele e sabe-se lá o que poderá ocorrer! Pensa,
às vezes, em se converter a alguma religião que, afirmando a existência de
reencarnação, explique o que este Ministro lhe teria feito de terrível em
outras vidas. Isto explicaria tudo e ela poderia se livrar, sem culpa, deste
Carma.
OBSERVAÇÃO: Por algum problema, que ainda não consegui solucionar, comentários não estão sendo exibidos neste blog. Caso queiram deixar algum enviem para meu mail: annadeassis@gmail.com. Criticas mesmo ruins serão bem vindas..
Nenhum comentário:
Postar um comentário