sábado, julho 13, 2013

A BOCA DA SOGRA

A frase é um espanto: a sogra dela botou uma boca nova! Ao que a outra retruca: boca, agora é um must, darling! Você não sabia? Bom pensei eu... até que sei! Boca pra mim sempre foi um “must”. Sem ela eu não falo e não como. Duas coisas que adoro fazer. Mas uma nova?! A comissária de bordo, num tom severo e ao mesmo tempo gentil, adverte: o cinto! A senhora tem que botar o cinto. A locução “tem que” é irritante. E se mais não fosse, para proferi-la estava ela curvada sobre mim, impossibilitando a visão das dialogantes e impedindo, com aquela voz aérea, que eu escutasse a intrigante conversa que se passava nas poltronas do outro lado do corredor. Inicio minha costumeira cena de pugilato com o cinto. Não sei por que só sento em poltronas que foram antes ocupadas por crianças ou micos. Jamais em ex-poltronas de gordos, imensamente gordos, que me dariam o prazer de reduzir o perímetro do cinto, na confortante sensação da magreza de que careço tanto. Puxo daqui e de lá e me atarraxo firmemente à poltrona. Arrisco um olhar. Um espanto! Aquelas duas haviam se apoderado de falas escritas para outros personagens! Aquelas duas matronas não falariam “must”, acompanhado por “darling”! Nunca! Aguardo, ansiosa, as próximas falas. Em vão... Os jatos aumentam o ruído e o avião corre pela pista, desabalado, demandando o céu da noite. As duas, agarradas aos braços da poltrona, imóveis, olhos fechados, fisionomia crispada, aguardam a morte iminente. O avião nivela e a esperança de vida retorna aos simpáticos e rechonchudos rostos. A conversa retoma: eu não faria! Boca... Não sei, não, Odete... Boca é cartilagem... pode não dar certo!. E a outra, ferina: cartilagem?! Que ignorância, Corina! Boca é mucosa. Uma sensação desagradável toma conta de mim. E eu que nunca havia me dado conta disso! Eis, que de repente, e no rosto, me vejo possuidora de alguma coisa que lembra muco, em pleno voo  Simpatizo com Corina. Cartilagem é muito mais agradável. Abro, aflita, o pacotinho do lenço perfumado fornecido pela Varig e passo rapidamente pela boca prevenindo o escorrer de alguma coisa visguenta o que agora me parece provável. O som das vozes retorna. É óbvio que perdi algumas frases durante o devaneio: ele é um mágico! Ele?! Quem? Onde foi parar a sogra? E a boca? Pois pra mim não serve! Eu nunca faria isso! O “isso” tem a acentuação do desprezo. Volto ao devaneio. Elas devem ter a minha idade... aquela... a terceira. Sim, porque depois que adquirimos o direito à fila dos idosos, a idade torna-se genérica. Qualquer uma é terceira. Pois eu faria! O tom é de desafio, chamando para um duelo verbal. E por que não faz? Faz, então! E aí, meu Deus? Ela faz ou não faz? Desavergonhadamente e ostensiva observo a boca que talvez faça. Será que precisa? É... tem ruguinhas...  Aquelas terríveis por onde escorre o batom nos dias de calor, fazendo com que se atarraxe ao rosto uma centopéia vermelha. Agora a centopéia movimenta-se nervosa: só não faço porque não tenho dinheiro! Com essa declaração ela ganhou todo o meu apoio. Isto é de fato um problema. Depois que passei à condição de “nouveau pauvre”, colocada por uma aposentadoria rotulada como vagabundagem pelo Presidente da República (ser CLT é uma droga, não?) a gente não pode fazer... O que? Nada! A gente não pode fazer absolutamente nada! Odete tem toda razão: não dá para botar uma boca nova. Corina não concorda: vende o carro, ué! O que é que você prefere, o carro ou a boca? Que dúvida terrível! Analiso. Comparo prós e contras. Eu acho melhor manter o carro. Pelo menos eu iria preferir o carro. Mexer só na boca... pra quê? Quem tem boca vai a Roma. O ditado não faz qualquer distinção, não exige uma qualificação bocal específica, fazendo crer que com qualquer boca chega-se lá. Mas carro, não só vai a Roma, como traz as compras do supermercado. Vende, não, Odete! Sorrio, aliviada e escuto que ela também optou pelo carro. Sem ele não pode ir a aula de hidroginástica. Como é que ela vai sair assim pela rua de maiô? É verdade! Não deve fazer isto, não. Observo mais um pouco, agora me detendo no corpo inteiro. É deselegante minha crítica, mas para falar a verdade não está adiantando nada essa hidroginástica. Desculpa Odete, mas não está. Com esforço consigo não verbalizar o que penso: quem sabe, no seu caso, melhor mesmo vender o carro e passar o capital para a boca já que a hidroginástica não está com nada! A amiga parece que ouviu meus pensamentos: você está indo a esta hidroginástica há mais de um ano. Não vejo a diferença! A resposta vem furiosa, você que pensa! Seguida de imediato por uma grosseira e definitiva declaração da outra: eu não penso... vejo!. Que maldade! Isso não se faz, Corina. Eu pensei a mesma coisa e fiquei calada, não fiquei? Que feio! O silêncio instala-se. Pesado. Odete abre a revista da Varig e finge ler. Corina, emburrada, recosta a cabeça e fecha os olhos, apertando as pálpebras com tanta força, que me vem vontade de alertar: assim vai dar mais rugas e você vai ficar com vontade de botar olhos também. E aí, não vai haver carro que chegue!  A voz do Comandante nos alerta que dentro de alguns minutos estaremos pousando no aeroporto do Galeão. A temperatura é de 34 graus! As duas se remexem nas poltronas, trocam um olhar furioso e puxam os estojos de maquilagem, procurando colocar limites na rubra centopeia para enfrentar o calor do Rio de Janeiro e o desfazer violento de uma amizade de anos. Ah, Comandante! Você está errado. A temperatura está mais alta do que isto! Passa, e muito, dos quarenta! 

2004



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