Já
estávamos nos preparando para partir quando o líder do acampamento
aproximou-se. Uma extraordinária modificação havia ocorrido em sua postura, há
poucos minutos, orgulhosa e altiva: estava visivelmente constrangido. Era
evidente que queria nos dizer alguma coisa, mas as palavras só saíram quando o homem a seu lado lhe mandou um cutucão nas costas. E veio a espantosa declaração, dirigida a meu colega, funcionário do INCRA, velho conhecido de
todos por ali: o companheiro aqui quer
um aconselhamento da veinha. Falta de outra mulher presente a “veinha” devia ser eu
mesma. Mas um aconselhamento?! Logo eu que tenho o maior problema dirigi-los até aos filhos e às netas já adultas. Acho que gastei todos os aconselhamentos possíveis
na fase da adolescência dos primeiros. Embatuquei sem saber como responder ao olhar interrogativo de meu colega e me silêncio foi tomado como aquiescência. A um sinal do líder sentamo-nos no chão, à sombra dos buritis, com a seriedade
exigida pelas expressões graves e preocupadas dos dois demandantes, e
aguardamos o relato do fato que exigia um aconselhamento geriátrico. O
cutucão inverteu a direção, provocando a fala do “companheiro”. Devia ter entre
45 e 50 anos. Nunca se sabe naquele agreste. O sol e a vida castigam demais.
Poderia até ter menos. Os olhos e a voz eram doces e tristes. Muito tristes. E
a história – ai Meu Deus! – mais triste ainda. Esperava-se de mim a solução que
muitos homens e mulheres, daqui do nosso lado da vida, buscam em vão. Difícil
mesmo! Qualquer que seja a condição social que se tenha. Selmira, sua mulher há 17 anos, o havia traído. E logo
com quem: Faustino! Seu compadre! Um horror! E foi então que veio, triste e comovente, o relato do objetivo do aconselhamento: ele não queria, não podia deixá-la. Seria fácil se conseguisse.
Nada que uns bons tabefes não resolvessem ao expulsá-la de casa. Mas podia
fazer isso, não! Irremediavelmente gostava dela. Gostava demais. Gostava de
doer. Exigia – pobre de mim - que a ouvisse, que encontrasse nas palavras dela
o argumento que lhe permitiria continuar a sentir o cheiro de seu corpo na rede de
todas as noites, sem perder a face. Sem a desmoralização que era certa. Alguma
coisa que justificasse, que tornasse aceitável o mal feito e que fizesse com
que o respeito com que sempre o trataram não fosse perdido. E para isto minha
experiência de vida devia servir. A dona
não gostava de em antes de morrê levar
este bem-feito pro céu? O argumento foi definitivo. Sentindo-me com o pé à beira do
túmulo, prestes a nele mergulhar pra todo sempre, decidi agregar este bem-feito aos poucos outros que juntei
pela vida. Nunca se sabe, não é? Não tinha eu, naquele momento, a menor
inspiração que me levasse a encontrar as mágicas palavras para transformar Selmira numa
convincente Madalena do agreste. Mas a possibilidade do passaporte para o Paraíso haveria de fazer surgir no momento em que abrisse a boca, a sabedoria necessária para tal. Afinal era um
bem-feito inédito, de responsa! Insegura, diante de Selmira, cabocla bonita de se ver, deitei falação. Tudo que me veio à cabeça. Agarrei-me a aquele amor declarado,
àquela precisão de não perdê-la. Até me emocionei, confesso. Exausta, e já
achando que não iria contar com aquele bem-feito na hora do acerto de contas
final, parei. E foi aí que Selmira deu uma gargalhada gostosa. Confesso que
fiquei chocada. Selmira era uma cínica. Que droga! Aquele homem bom não merecia aquele traste! Abandonei todas as minhas convicções feministas e transformei os
tabefes numa surra exemplar. Declarei com a maior frieza e desprezo: Isto não tem graça nenhuma, Selmira! E
então aconteceu a confissão que – espero - me levará aos céus: Se avexe não, dona! Foi uma veizinha só! Em
cima do forno de farinha e... eu nem gostei. Incrível poder de síntese!
Como levar a sério um local como este? Forno de farinha desmoraliza qualquer
intercurso. E o “nem gostei”?! Maravilhada com a competente e precisa avaliação de Selmira me dei conta de que compadre Faustino, este sim, teria que se haver, para todo sempre, com a total desmoralização causada por seu péssimo desempenho. Perdi completamente a compostura e saí correndo aos
gritos, em direção aos três homens que, de longe, aguardavam o resultado do aconselhamento: Ela nem gostou, moço! Ela
nem gostou! Faustino está desmoralizado pra sempre! Peguei meu colega pela mão e entramos no jipe partindo em desabalada fuga antes que compadre Faustino, impressionado por minha provecta competência, viesse demandar um aconselhamento para livrá-lo
da pecha que o acompanharia até o fim de seus dias!
2005
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ResponderExcluirAnna Maria,
ResponderExcluirA historia de Dona Selmira e Seu Faustino, é ótima e retrata a forma simples como algumas pessoas entendem a sua propria pratica, no caso, sexual... Claro que no agreste ou sertão isto e desmoralização, e não tem perdão, mesmo porque isto pode ter recidiva. Boa foi a avaliação da dita cuja, que em síntese disse que não gostou e isto invalida qualquer possibilidade de se entender o ocorrido como um caso. Mas bom mesmo é a sua escrita. Sabe, eu tenho algumas historias para contar(escrever o que não faço com correção), mas só sei narrar (penso que sei). Com você é diferente, você coloca os seus personagens para falar é como a gente estivesse ali, no pé da conversa. Gostei.
Um grande abraço.
Ari.
José Arimateia da Silva - 84-9115-1601
Coisa gostosa seu comentário, José. A ação "que não tem perdão" foi, por Selmira tornada sem a menor importância face a inoperância de Compadre Faustino. Os pontos de vista do sertão são talvez diferentes dos nossos, tão urbanos. Mas são tão verdadeiros, não? Mias que grata pelos elogios e comentários.
ExcluirAbraços
Anna Maria