domingo, julho 21, 2013

JANELA

Era aquele mundão de gente. A luta de muitos anos, de gerações até, chegara ao fim. Os sem-terra acampados se transformavam naquele dia, em com-terra assentados. As casas da agrovila, modestas, pequenas, esperavam os novos moradores num convite à digna cidadania que todos merecemos. Para a festa mataram mais de um capão, cozinharam macaxeira  abóbora e capricharam na carne de sol, no feijão de corda, na paçoca, na farofa amarela. Matruz com Leite derramava o forró no alto-falante que, desta vez, não irradiava sobre o campo a indignação, a revolta e a luta. Haviam resistido à fome, ao medo, ao abandono, ao frio, ao desconforto, à miséria e à maldade das gentes. Em meio à movimentação uma figura estática. D. Januária, em frente a uma das casas, chamava atenção. A expressão que se revelava no rosto curtido da velha era estranha. Velha, sim. Por que por lá não existia idoso, nem terceira idade. Velho é velho mesmo. O politicamente correto não tem muito lugar quando a miséria nivela tudo e se dá nome aos bois com a naturalidade e a verdade das palavras que sempre usaram. Mas como eu ia dizendo, D. Januária estava ali, parada, olhando a casa que seria a sua. Que já era sua. Alguma coisa na fachada era o motivo de seu fascínio e dela não tirava os olhos. Aquela imobilidade começou a chamar atenção. Aos poucos, uma roda se formou em torno dela. Havia como que um respeito por alguma coisa que ela sentia e que, embora não sabida, passava uma solenidade que fazia com que se comportassem como fiéis num ambiente santo, reverenciando aquela figura enrugada e minúscula. O som do alto falante baixou e calou-se. O silêncio se fez em reverência à decana do acampamento. Porque D. Januária o era. Velha, a mais velha. Aos poucos ela se dá conta dos rostos que a observam. Olha cada um deles, demoradamente, muito séria. Por fim, o olhar se demora sobre a figura do acampamento. Um olhar de comando. E porque viveram e lutaram juntos por muito anos, décadas mesmo, ele a entende e se transmudando de líder em liderado e obedece. Aproxima-se dela e numa delicadeza nunca vista naquelas mãos rudes e deformadas pela enxada, dá um toque, apenas um toque, nas costas  magras, impulsionando a velha em direção à casa. D. Januária vai até à porta, abre, entra e a fecha atrás de si. O grupo continua em silêncio aguardando, não se sabe o quê. Passam-se minutos e ninguém se move. Um murmúrio geral quebra o silêncio quando a janela abre, emoldurando D. Januária. Ela não olha pra o grupo emudecido. Olha longe, olha firme, olha valente. E num tom de voz baixo e grave ue em a força de um grito ela fala: janela!...No protegimento dela tô oiando pro mundo! E todos, comovidos, entenderam. Porque a lona, onde sempre viveram, era sim uma casa. Então casa, sempre tinha havido. Mas janela... que mostrava o horizonte no “protegimento” ... nunca!

Um comentário:

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