Era aquele mundão de gente. A luta de muitos
anos, de gerações até, chegara ao fim. Os sem-terra acampados se transformavam
naquele dia, em com-terra assentados. As casas da agrovila, modestas, pequenas,
esperavam os novos moradores num convite à digna cidadania que todos merecemos.
Para a festa mataram mais de um capão, cozinharam macaxeira abóbora e
capricharam na carne de sol, no feijão de corda, na paçoca, na farofa amarela.
Matruz com Leite derramava o forró no alto-falante que, desta vez, não irradiava
sobre o campo a indignação, a revolta e a luta. Haviam resistido à fome, ao
medo, ao abandono, ao frio, ao desconforto, à miséria e à maldade das gentes.
Em meio à movimentação uma figura estática. D. Januária, em frente a uma das
casas, chamava atenção. A expressão que se revelava no rosto curtido da velha
era estranha. Velha, sim. Por que por lá não existia idoso, nem terceira idade. Velho
é velho mesmo. O politicamente correto não tem muito lugar quando a miséria
nivela tudo e se dá nome aos bois com a naturalidade e a verdade das palavras
que sempre usaram. Mas como eu ia dizendo, D. Januária estava ali, parada,
olhando a casa que seria a sua. Que já era sua. Alguma coisa na fachada era o
motivo de seu fascínio e dela não tirava os olhos. Aquela imobilidade começou a
chamar atenção. Aos poucos, uma roda se formou em torno dela. Havia como que um
respeito por alguma coisa que ela sentia e que, embora não sabida, passava uma
solenidade que fazia com que se comportassem como fiéis num ambiente santo,
reverenciando aquela figura enrugada e minúscula. O som do alto falante baixou e
calou-se. O silêncio se fez em reverência à decana do acampamento. Porque D.
Januária o era. Velha, a mais velha. Aos poucos ela se dá conta dos rostos que
a observam. Olha cada um deles, demoradamente, muito séria. Por fim, o olhar se demora sobre a figura do acampamento. Um olhar de comando. E porque viveram e lutaram juntos
por muito anos, décadas mesmo, ele a entende e se transmudando de líder em liderado e obedece.
Aproxima-se dela e numa delicadeza nunca vista naquelas mãos rudes e deformadas pela enxada, dá
um toque, apenas um toque, nas costas
magras, impulsionando a velha em direção à casa. D. Januária vai até à porta,
abre, entra e a fecha atrás de si. O grupo continua em silêncio aguardando, não
se sabe o quê. Passam-se minutos e ninguém se move. Um murmúrio geral quebra o
silêncio quando a janela abre, emoldurando D. Januária. Ela não olha pra o grupo emudecido. Olha longe, olha
firme, olha valente. E num tom de voz baixo e grave ue em a força de um grito ela fala: janela!...No protegimento
dela tô oiando pro mundo! E todos, comovidos, entenderam. Porque a lona, onde sempre viveram, era sim uma casa. Então casa, sempre tinha havido. Mas janela... que mostrava o horizonte no
“protegimento” ... nunca!
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