segunda-feira, julho 22, 2013

DIGNIDADE AINDA EXISTE

Os tempos andam feios, não é? O jornal embaixo da porta não ajuda em nada. Vem com ele e nele a certeza de que a leitura dificilmente trará boa coisa. Mas, mesmo assim a gente lê e se assusta, na indignação, na tristeza e na revolta. Fica aquela sensação horrível de “não tem mais jeito”. Mas não é bem assim. Muita coisa boa ocorre no coração deste País e não é publicada. Por quê? Não tenho certeza, mas desconfio: jornais são lidos, sobretudo por moradores de cidades e, para estes, notícia tem que ter o desagradável cheiro de asfalto. Aquelas que cheiram à terra não tem vez por estas nossas paragens. É preciso se embrenhar sertão adentro para delas se tomar conhecimento e isto poucos, muito poucos, o fazem. Nesta nossa Disneylândia, onde reina o Mickey, Saci não tem vez. A história que vou narrar se passou no interior do Maranhão. Os protagonistas: moradores de uma fazenda fazia tempo. Muito tempo. Os avós e bisavós já lá moravam. Os antagonistas: dois pândegos, filhos de um velho fazendeiro, proprietário da fazenda, recém-falecido. Enquanto este viveu tolerou a presença dos moradores, responsáveis pela escassa produção da fazenda: uma agricultura de subsistência já que não tinham permissão para aumentar o cultivo que permitisse a venda. Forneciam, em troca desta "caridade" o que fosse necessário para abastecer a casa grande. Quando acordados os moradores apenas comiam; dormindo sonhavam com a propriedade do pedaço de terra em que moravam. Sonho esse antigo. Vinha passando de pai para filho, aumentando de intensidade a cada geração. Para ganhar alguns trocados trabalhavam como temporários nas fazendas vizinhas, nos tempos de colheita. Fora deste tempo ficava difícil e os rapazes mais moços demandavam a cidade em busca de biscates. As moças, algumas, iam para o sul, como empregadas domésticas, indicadas pelo velho fazendeiro aos muitos visitantes que lá aportavam. Partiam chorosas, mas fazer o quê? Outras se perdiam nos bordéis das cidades grandes, deixando chorosas as mães e indignados os pais. Delas não se sabia mais nem o choro, nem o riso: perdiam-se mesmo, literalmente. O fazendeiro era rico, muito rico e a fazenda servia apenas para lazer de convidados vindos de todas as partes. Jamais lhe passou pela cabeça repartir aquele mundão de terra, que não cultivava, com quem o fazia. Quem sabe julgava-se eterno, como muitos de nós. E esta eternidade garantiria a permanência dos moradores. Só que morreu. Os filhos desinteressados da fazenda resolveram vendê-la por dez reis de mel coado. Viviam lá pelas europas, dilapidando a fortuna da família e, de lá, determinaram ao procurador que iniciasse o despejo dos moradores. Estes pela primeira vez reagiram. Passaram a reivindicar a posse de suas parcelas, solicitando a desapropriação. Estava estabelecido o conflito, e satisfeitos todos os requisitos para uma boa história.  Depois de muitas idas e vindas constatou-se que de fato a fazenda era inexplorada, abandonada mesmo, não fosse pela pequena cultura dos moradores. Vai daí que a desapropriação era certa. Na negociação os filhos do fazendeiro ficariam com uma parte a ser demarcada onde se localizava a casa grande e a piscina. O restante seria dividido formando um assentamento para os moradores tornando-os proprietários. Foi aí que os pândegos rapazes ficaram com raiva. Pouco lhes importava a fazenda e, embora o que fossem receber pela desapropriação fosse mais do que razoável, sentiram-se lesados. Resolveram aparecer, na busca de encontrar uma forma de vingança contra aqueles capiaus que tinham ousado enfrentá-los. E, encontraram! Antes que a desapropriação se consumasse, na calada da noite, mandaram passar a escavadeira sobre o cemitério dos moradores. Um cemitério sem mármore, onde não havia lápide, nem escultura. Apenas pequenas cruzes de madeira onde o nome do morto era entalhado a canivete. E a terra foi revolvida misturando um horror de ossos. Feia a coisa. Ao acordarem os moradores se depararam com aquela montanha de terra onde estavam soterrados e misturados os restos mortais do filho de Raimundinho, do Vô Chico, da Veia Noca e os de mais um bandão de gente. Os rapazes, protegidos por capangas armados, estavam prontos para enfrentar a esperada reação. Mas não contavam com o silêncio daqueles homens, mulheres e crianças que os defrontavam com uma expressão que não sabiam traduzir, mas que lhes deu medo. Parecia uma ameaça perigosa contra qual garrucha alguma teria serventia. Até as juritis pararam de cantar. Os moradores então desviaram o olhar para montanha de terra e de ossos. Olhar este mais estranho ainda. E, como obedecendo a um comando vindo daquela montanha macabra, viraram as costas e dirigiram-se a pé, ainda calados, para São Luiz. Foram dois dias de marcha em que não comeram, não dormiram. Nem pareciam cansados quando chegaram apenas o estranho olhar permanecia ao se defrontarem com o funcionário do INCRA encarregado de recebê-los, Este deitou falatório, animando-os: dali a dias os papeis estariam prontos. Eles seriam proprietários! E foi ai que Seu Chico do Catolé, quase centenário, rompeu o silêncio que havia dias mantinham e transformou-o em palavras: “Terra, doutô, não tem serventia sem passado. Nós carece dele. Vai tê que peneirá tudo aquilo e separá os osso. Deve de tê uma lei pra isso. E que não tivé, então vai ter que faze uma. Pra nós e pra os que de nós morreram”. Não sei se tem ou se fizeram uma lei pra isso. Até onde acompanhei a história não haviam nem conseguido, nem desistido. O conflito havia se tornado emblemático. Espero que tenham conseguido devolver à terra, separados como mereciam, os ossos do filho de Raimundinho, de Vô Chico e da Veia Noca e de todos os outros, recuperando a dignidade do passado de tanto careciam. Como todos nós!

2006

2 comentários:

  1. Anna Maria,

    Muito digno o homem que na hora de receber um legado que provavelmente era seu de direito, colocou em primeiro plano a vida passada e vivida naquele torrão sem a qual a sua historia seria uma simples estória...
    Um grande abraço
    Ari
    José Arimateia da Silva - 84-9115-1601

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    1. Que bom que ficou claro que eles se recusavam a assinar a posse definitiva da terra enquanto não fosse resolvida a recuperação das ossadas. Depois de publicar, reli e fiquei com medo que isto não houvesse ficado claro. Grata pelo comentário, Ari.
      Um abraço
      Anna Maria

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