A arte
de contar histórias garantiu, até seus setenta anos, a sobrevivência de
Raimundo Nonato, naquele povoado do interior do Maranhão. Almoço, jantar, café
da manhã, um canto pra dormir, e até algum para o cigarro e a pinga, eram dados
em troca de suas fabulações. Personagens os tinha variados, empenhados em
lutas, amores e aventuras heroicas sempre no único cenário do sertão que
conhecia desde o nascimento. Variavam conforme o público. Se de mulheres as
deixava lacrimosas pelas desditas de moça a quem o dono da fazenda fez mal,
lançada no mundo por um pai de grande crueldade e deixada a mercê da volúpia
dos homens, num bordel em São Luiz ou nas “oropa”, (qualquer espaço geográfico
que extrapolasse os limites da capital). Se homens, as emboscadas de matadores
se multiplicavam, a mando de coronéis que se engalfinhavam por posse de terras.
Se crianças, os relatos eram povoados pelos personagens do Bumba meu Boi numa
adaptação livre onde o boi estimado via-se as voltas, ora em tom de comédia,
ora em tom de tragédia, com o negro vaqueiro, sua cabocla e o homem branco aos
quais se juntavam, dependendo do tempo dispunha e da fome que sentia, os
vaqueiros, o Pajé, o Padre, o Médico, o Palhaço e a Burrinha. Raimundo Nonato
anunciava-se, à porta de cada casa, com uma estrofe do catimbó: Cibilim de ouro, chuva fina não me
molha. Se você não me quiser, outros querem e você chora. Ameaça vã. Todos o queriam. Afinal
era a única diversão, o único momento mágico em que a imaginação tomava asas
naquele sertão. Até que Salviano, o próspero padeiro, foi a São Luiz e voltou
de caminhão com uma carga misteriosa que arrumou, caixote em cima de caixote,
no espaço em frente à capela, pomposamente chamado de A Praça. Garantido por um
gerador claudicante, estava para ser inaugurado O Cinema! Uma tela velha, roída
pelo tempo, subiu atracada em dois mastros. Outros mastros delimitaram a
platéia, cercada de um pano alto que impedia a vista da tela aos que não
adquirissem a entrada, fixada em 20 centavos. Um projetor de 16 milímetros e rolos
e mais rolos de antigos westerns garantiriam o espetáculo. A estréia foi um
sucesso. Todo o povoado e mais gente vinda de longe, esgotaram a lotação.
Raimundo Nonato apavorou-se: como lutar contra aquela coisa do maldito?
Desconsolado, passou a observar o filme atrás da tela, já que os 20 centavos
não lhe eram fáceis. Passada a novidade, a platéia começou a duvidar de aquilo
ser uma real diversão. As legendas passavam muito rápidas, impedindo a leitura
dos pouco letrados e a maioria era analfabeta mesmo. Vai daí que não entendiam
nada. Além disto, não conseguiam reconhecer, naquelas figuras estranhas, os
seus conhecidos personagens. Só reconheciam mesmo os cavalos e estes não
falavam ou conduziam a história. Os índios eram certo atrativo, mas andavam vestidos.
Coisa esquisita! Começaram a comentar e os comentários chegaram até Raimundo
Nonato que continuava a esquadrinhar a imagem, atrás da tela, buscando
inspiração para enfrentar o inimigo que lhe tirara o sustento. E ela veio! Deus
é pai, não é padrasto! Ele esperou o momento certo e, na primeira noite em que
uma razoável quantidade de não espectadores passou por seu ponto de observação,
ele falou alto e dramático, fazendo às vezes do mocinho que, empunhava dois
revólveres apontados na direção ao bandido: cabra da
peste! Arreia o trabuco. Tô aqui a mando do Coronel Juca. Diz tuas oração e te
aprepara pra morrê.
Os passantes pararam para ouvir e se deixaram ficar até o fim do filme,
transmudado e animado por Raimundo Nonato. A pequena platéia foi levada às
lágrimas pelo defloramento de Gene Tierney (Rosinha, filha do Coronel Juca).
Cena, que de acordo com a versão de Raimundo Nonato, não poderia ser mostrada
na tela em respeito às famílias, mas foi relatada em palavras comoventes. Este
triste fato levou à matança final, quando Robert Taylor (Cassiano Canindé)
vingou a honra da amada, enfiando uma saraivada de tiros no vilão Dan Dureya
(Floriano Mata Sete). Morte esta muito aplaudida na concordância com a fala
final de Cassiano Canindé: morre cão danado!
Só não te sangro como um porco como tu merecia pra não sujar minhas mãos.
Careço delas limpas pra pedir a mão de Rosinha. No dia seguinte, num caixote,
fazendo às vezes de bilheteria, Raimundo Nonato cobrava entrada para sua versão
do espetáculo. Foi uma enchente. Além de mais barato (10 centavos), juntava-se
à fome à vontade de comer: as deliciosas e familiares histórias de Raimundo
Nonato eram agora enriquecidas pela imagem! O cinema atrás da tela passou a ser
a grande atração: índios americanos assumiam lugar das personagens do bumba meu
boi e dançavam catimbó antes da batalha; as moças do cabaré, agora quengas de
respeito, levavam os homens à loucura ao dizer: se achegue,
meu nego... A mocinha
era amarrada pelos bandidos e deixada em meio à plantação de macaxeira brava ou
atrás de moitas de araticum-cagão, enquanto o pastor, transvestido em prefeito
da cidade, incitava os meeiros, agregados e alugados a não trabalhar nas terras
do Coronel Quirino, que tinha parte com o demônio. Salviano desesperou-se. Viu
desaparecer sua platéia, do lado direito, enquanto no avesso, as pessoas se
acotovelavam por um lugar perto do narrador. E, não tendo outro jeito, deu
sociedade a Raimundo Nonato que, finalmente, aos setenta anos tornou-se um dos
poucos e bem sucedidos empresários do lugar, próspero sócio do Cinema pelo
Avesso.
2005
Esta é uma das muitas histórias que resultaram de minhas
andanças pelo interior deste tão belo e tão maltratado País, desenvolvendo e
implantando sistemas na área de Reforma Agrária. Eu sempre viajava com um
caderninho anotando fatos como este que me encantavam e por vezes entristeciam.
Muitos serão relatados neste Blog. São todos absolutamente verdadeiros e
conhecer seus protagonistas foi um grande privilégio. Foi em conversa
com eles que consegui material para reproduzir suas falas, tão particulares e alguns
dos acontecimentos relacionados com a história que não tive o prazer de
assistir.
Importante: milagrosamente parece que
consegui resolver o problema da impossibilidade de que sejam postados
comentários ou quando postados a impossibilidade de que sejam exibidos para
mim. Ficaria muito grata se um dos possíveis leitores deixasse um comentário mesmo que negativo.
Ana. Que maravilha!
ResponderExcluirLuiz Soares Brandão Filho
Brandão, mais que grata por seu elogio. Mas maravilha é a história que tive o privilégio de assistir. Outras, como está serão narradas nestas crônicas. Espero continuar a ter você como leitor. Obrigada mais uma vez,
ExcluirO texto tão bem escrito, que consigo até assistir ao filme passando em minha mente. Parabéns pelo privilegio realmente de ver de perto e obrigada por trazer até nós, que geograficamente distantes, mas tão perto através de suas palavras, aliás belas palavras.
ResponderExcluirDannielle Silva.
Danielle, minha intenção era, quando escrevi, passar para as pessoas a beleza do inusitado. Que bom que segundo você, consegui. Mas privilégio é ter leitores como você.
ExcluirAnna Maria