Eram amigos desde sei lá quando. Parelhos em idade, ele três anos mais velho. Um
belo homem. Ela não era uma bela mulher, mas agia como se fosse e isto
convencia a todos de que o era. Naquela época estava ela nos primeiros anos dos
cinqüenta, ainda trabalhando na mesma empresa em que durante tantos anos,
empenharam-se juntos em inúmeros projetos. Ele, não mais. A cátedra de
professor numa universidade rural havia criado uma distância complicada de se
dar jeito, já que ele resolveu morar por lá.
E como os dois detestavam falar ao telefone, a conversa de todo sempre havia
ficado difícil. Conversa infindável, esta. Falavam de tudo: da vida, do
trabalho, dos filhos, dos companheiros, e que o que mais viesse. Mas,
sobretudo, era no assunto “trabalho” que mais se encontravam. Formavam um time
perfeito, azeitado, mesmo nas discordâncias que quando surgiam sempre
resultavam num avanço pelo convencimento de um ou do outro que passava a remar
junto. A ela fez uma enorme falta quando se foi para outras paragens. Eles se
entendiam pelo olhar. Entusiasmavam-se tanto que quando iniciavam um novo
projeto ficavam envolvidos dias após dia, entrando noite adentro no terreno das idéias, das descobertas, de soluções novas. Por vezes, numa coincidência
incrível o Eureka vinha em uníssono. Custou a engrenar com outros parceiros. Numa bela tarde de maio ele a surpreendeu aparecendo em seu trabalho. Estava morrendo de saudades, disse.
Foi uma festa. Coisa tão boa vê-lo. Tinham tanto assunto para por em dia! Em
linhas gerais até que ela sabia do que andara acontecendo: o terceiro casamento
dele tinha ido pro brejo. Assim como o dela. Engraçado. Era a primeira vez que
ambos estavam solteiros ao mesmo tempo. Sempre havia sido uma gangorra. Ele
casava; ela descasava. Ela casava; ele descasava. Em todas estas idas e vindas,
haviam ficado amigos também do cônjuge do outro que com o descasamento
desaparecia das vidas... dos dois. E era assim que, a seu turno, eles tomavam a
posição de terceira pessoa sempre presente junto ao casal que estivesse estável
no momento. No dia em que ele apareceu, assim de surpresa, ela estava sem
carro. O dela tinha dado um treco (para ela, carros não davam defeitos, davam
trecos). Felicitou-se. Assim poderia pegar uma carona, esticando a conversa e
quem sabe até esticando a esticada, num jantar. O carro deslizava pelo aterro
do Flamengo ao som de uma música que ambos curtiam. E ele falou: lembra? O
pôr-do-sol estava deslumbrante. Tudo tão bom. Tão bonito. E ela comentou:
quando o dia começou não se anunciava tão perfeito. Ele sorriu: perfeita é
você! Puxa, mulher, que saudade! Do lado de cá também, ela declarou. Ele, por
segundos, desviou os olhos e olhou para ela. Parecia emocionado. Não, não era
bem isto, era outra coisa. “Outra coisa” que começou a dar nela também. Cruzes,
ela pensou, não pode ser. Que absurdo! E ele respondeu a seu pensamento, como
sempre fazia e perguntou: absurdo por que? Ora - ela respondeu aflita – você
nunca sentiu isso... Ele interrompeu: isso que você está sentindo agora...
também? Ela emudeceu numa emoção adolescente. Meu Deus! A mão direita, firme,
deixa o volante e se apossa da mão dela. Mágica! Pura mágica! Ele também
emudeceu. Aumentou o som e a velocidade do carro que naquele dia lindo dirigiu-se à Copacabana. Daí Ipanema e Leblon se seguiram lindos, lindos. A chegada à Barra foi uma emoção só. Até a entrada no Motel foi fantástica. E foi ai que bateu nela o nervoso! Pode isto?! Tenho que falar alguma coisa. Qualquer coisa. Este silêncio está me
deixando aflita demais. Naturalidade. É isto! Tenho que ser natural. E foi
assim que ao entrarem no quarto ela perguntou: você conseguiu emplacar aquele
projeto? Os olhos dele brilharam: e como! Vou mostrar a você. Abre a pasta que havia trazido consigo e dela
tira um calhamaço de papeis. No início em pé, ao lado da mesa de entrada, ele
começa a explanação. Ela não se lembra do momento em que se sentaram e
começaram a discutir sobre um ponto sobre o qual não concordavam. Lembra-se
apenas que subitamente ele disse: estou morto de fome. Vamos pedir alguma coisa
para comer? Ela apenas acenou com a cabeça. Estava concentrada tentando achar
argumentos que sustentassem seu ponto de vista. Jantaram ainda discutindo.
Afastaram os pratos e continuaram a discussão. Muito tempo depois foram
interrompidos pelo som do telefone. Ele foi atender e voltou informando
espantado: perguntaram se vamos ficar a noite toda! Ambos olharam para os
respectivos relógios... e foram acometidos de um riso incontrolável. Sem a
música e sem o belo pôr-do-sol, o projeto falara mais alto. Já voltando, na
altura de Ipanema, ele comentou: jantarzinho caro, este, né?
2005
Nada como acordar num dia de folga e ensolarado com uma visita ilustríssima de Anna Maria no meu blog. Obrigado, Anna. Fiquei honrosamente feliz. Vim retribuir a visita e caí aqui, no equilibrio desta gangorra, que tanto teima em pender para um lado e, seguidamente, para o outro. Lindo texto este. Estava me limitando a falar; andei passeando por aqui outras vezes, mas preferi não deixar comentário, quem sabe, talvêz, por nunca nos termos falado. Bom, já que deu o chute inicial estarei em campo daqui pra frente.
ResponderExcluirA amizade, assim como no seu conto, é mais forte.
Muito obrigado, mais uma vez, pela visita e pelo carinhoso comentário. Abração, Anna!
Alexandre Pedro
Coisa gostosa, Alexandre, seu comentário! Amizade, é sim, uma das melhores coisas deste mundo. Vê-lo por aqui será sempre um prazer.
ResponderExcluirAbraços
Anna Maria
Pôxa! Que amizade maravilhosa essa! Tão difícil nos dias de hoje em que as pessoas se entendem apenas no olhar. Muito feliz de a ter conhecido para trazer mais boas leituras a minha vida.
ResponderExcluirAgora sou fã e amiga também. Um grande prazer em ler!
Beijos carinhosos Anna Maria.
Delícia, Anna!!! Ri muito e me emocionei! grande beijo.
ResponderExcluirEste blog maluco só me envia comentários se a pessoa se identificar como "anônimo". Se não assinar no corpo do comentário eu fico sem saber quem é. De qualquer modo que bom que deu para rir e emocionar. O mesmo acontece comigo sempre que me lembro. O jantar foi caro mesmo! Como amigos dividimos. O que não aconteceria se acontecesse o que não era mesmo pra acontecer.
ExcluirTalvez desse certo, talvez fosse o fim de uma incrível amizade.
ResponderExcluirAcho triste quando alguém se arrepende do que não fez, se eu fosse um dos pares talvez ficasse eternamente arrependido.
Manoel Carlos
Não daria não Manoel Carlos. Era amizade mesmo e só. Ele já se foi faz tempo, deixando uma grande saudade mas sempre frequenta minha Casa Vazia.
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