“Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville”,
ela pensa. Será que Verlaine
o haveria escrito se, numa manhã de chuva, olhasse para o mico que se equilibra
no galho da mangueira? Não, provavelmente não estaria triste assim. Não
poderia. A chuva que cai inesperada deixando as folhas da mangueira luzindo de tão
molhadas iria inundar seu coração de alegria como faz com o dela, dia amanhecendo.
Não só o coração dela, mas também o do mico que a observa com os olhinhos
pedintes, esperando que este olhar tenha o efeito desejado: a banana nossa de
cada dia. Ele também parece curtir a
chuva que lhe gruda o pelo ao corpo, tornando-o ainda menor do que é. Parece
que na cidade só os dois estão acordados: o mico e ela. O galho da mangueira
onde está encarapitado quase entra pela janela. Outro dia o porteiro comentou:
precisa cortar. Precisa coisa nenhuma! Deixe que entre. Sua relação com a mangueira
é longa. Intima. Diária. Como negar-lhe a entrada em casa? A relação com o mico
é mais recente. Melhor seria dizer ‘’os micos’’. São muitos. Mas hoje somente
este. Vai ver os outros estão dormindo e este, como ela, tem esta mania maluca
de ver o sol nascer. Informa ao mico: “Verlaine ficou triste com a chuva”. Os
olhinhos se apertam e ele faz cara de quem não está entendendo. “Era um poeta
francês, sabe?” Pela expressão, ele parece saber o que é um poeta. Mas francês
não está fazendo lá muito sentido. Pudera! Na França não tem mico! A banana
transpõe a janela. Ele acomoda-se no galho, comendo e dando sinais de querer
continuar a conversa. Vai ver gosta de poesia. Ela sempre desconfiou que quando
não está, eles – os micos – entram escritório adentro. Mais de uma vez encontrou
indícios. Sobretudo pelos livros que aparecem, misteriosamente, no chão. Não se
deu conta se eram de poesia. Vai ver eram. “Bom, se vocês andam mexendo mesmo,
você pode ler o poema inteiro e dar uma olhada na Larousse para entender o que
é francês. O poema é bonito, sabe? Bonito e triste. Muito triste”. Triste
também é a expressão do animalzinho. Será pela banana que acabou ou pelo poema?
Vai outra banana. É... o fim da banana era a causa da tristeza: a carinha reluz
de alegria. Saciada a gulodice, o olhar interroga e ela responde: “não existiam
não! Ou pelo menos era difícil conseguir bananas em Paris, naquela época”. Um
brilho de compreensão e nova indagação iluminam os olhinhos curiosos. “Não!
Também, não! Não era por não ter bananas que ele estava triste. Ele era triste,
mesmo. Sempre. O que? Eu sei que isto não se deve ser. Fazer o que? Os poetas
às vezes, são. O mico reage negativamente: “Ah... você não é poeta”! Não
imaginei que fosse. Um mico poeta não seria razoável. Tá legal. Admito que
também não é razoável estar conversando com você sobre Verlaine. Mas é que dei
pra isto agora. Falo com as coisas (ah ! desculpa!) com os entes os mais
disparatados. Você nem imagina as conversas que tenho com a samambaia da sala. Ora,
sei lá eu por que! Não sou muito de analisar os porquês. Mas eu estava falando
era de Verlaine: um dia vou ler para você algumas poesias dele. Claro, vou
traduzir. Sempre traduzo poesias. Não de um idioma para outro, é verdade.
Traduzo pra mim procurando nelas, o meu sentido. Em Verlaine não me encontro
muito, é verdade, mas acho tão bonito. Madame Jacobina me apresentou. No
Bennett e no Andrews. "Anne Marie! Allez au bureaux de D. Iracemá, avec
zero!" Eu era um tanto endemoniada, sabe ? Mas adorava quando as
aulas eram sobre poetas e quando ela não gritava: "La liaison, ma petite. Voyons!" Sei que você não entendeu. Mas não interessa,
não. São só coisas lá da lembrança. Só interessam a mim mesma. Não sei o que
foi feito dela. Da Madame. Claro que deve ter morrido. Mas tá vivendo agora na
minha memória. Como eu vou viver um dia pra você. Você vai ler Verlaine ou quem
sabe num dia chuvoso, vai lembrar-se de mim, né? Legal isto. Mais banana?! Olha
que você vai passar mal. E eu não sei tratar de dor de barriga de mico. Tá legal.
Só mais uma e por hoje chega. Olha! A chuva parou! Claro, deve ter parado para
Verlaine também, em algum momento. Mas acho que não adiantou. Poetas são bambas
em fazer o sentimento perdurar. A chuva lá dentro dele continuou caindo,
triste, muito triste. É... é dose. Mas é bonito. O quê ? Existem sim outros
poetas. Muitos outros. Lembrei de Verlaine por causa da chuva. Sempre me lembro
dele quando chove. E aqui no Humaitá, chove muito, você já reparou? Não, meu
caro! Verlaine não conheceu o Humaitá! Desconfio que nem sabia do Brasil.
Mas hoje, meu querido, ele está aqui”.
2005
Adorei sua conversa com o mico poeta, ou com o poeta e o mico...mas estou com saudades. Quero conversar também.
ResponderExcluirBjs
Suzana
Que bom que você gostou, Suzana. Os micos são íntimos já faz tempo. Só não sei são sempre os mesmos!
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