segunda-feira, julho 29, 2013

VERLAINE NO HUMAITÁ

“Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville”, ela pensa. Será que  Verlaine o haveria escrito se, numa manhã de chuva, olhasse para o mico que se equilibra no galho da mangueira? Não, provavelmente não estaria triste assim. Não poderia. A chuva que cai inesperada deixando as folhas da mangueira luzindo de tão molhadas iria inundar seu coração de alegria como faz com o dela, dia amanhecendo. Não só o coração dela, mas também o do mico que a observa com os olhinhos pedintes, esperando que este olhar tenha o efeito desejado: a banana nossa de cada dia.  Ele também parece curtir a chuva que lhe gruda o pelo ao corpo, tornando-o ainda menor do que é. Parece que na cidade só os dois estão acordados: o mico e ela. O galho da mangueira onde está encarapitado quase entra pela janela. Outro dia o porteiro comentou: precisa cortar. Precisa coisa nenhuma! Deixe que entre. Sua relação com a mangueira é longa. Intima. Diária. Como negar-lhe a entrada em casa? A relação com o mico é mais recente. Melhor seria dizer ‘’os micos’’. São muitos. Mas hoje somente este. Vai ver os outros estão dormindo e este, como ela, tem esta mania maluca de ver o sol nascer. Informa ao mico: “Verlaine ficou triste com a chuva”. Os olhinhos se apertam e ele faz cara de quem não está entendendo. “Era um poeta francês, sabe?” Pela expressão, ele parece saber o que é um poeta. Mas francês não está fazendo lá muito sentido. Pudera! Na França não tem mico! A banana transpõe a janela. Ele acomoda-se no galho, comendo e dando sinais de querer continuar a conversa. Vai ver gosta de poesia. Ela sempre desconfiou que quando não está, eles – os micos – entram escritório adentro. Mais de uma vez encontrou indícios. Sobretudo pelos livros que aparecem, misteriosamente, no chão. Não se deu conta se eram de poesia. Vai ver eram. “Bom, se vocês andam mexendo mesmo, você pode ler o poema inteiro e dar uma olhada na Larousse para entender o que é francês. O poema é bonito, sabe? Bonito e triste. Muito triste”. Triste também é a expressão do animalzinho. Será pela banana que acabou ou pelo poema? Vai outra banana. É... o fim da banana era a causa da tristeza: a carinha reluz de alegria. Saciada a gulodice, o olhar interroga e ela responde: “não existiam não! Ou pelo menos era difícil conseguir bananas em Paris, naquela época”. Um brilho de compreensão e nova indagação iluminam os olhinhos curiosos. “Não! Também, não! Não era por não ter bananas que ele estava triste. Ele era triste, mesmo. Sempre. O que? Eu sei que isto não se deve ser. Fazer o que? Os poetas às vezes, são. O mico reage negativamente: “Ah... você não é poeta”! Não imaginei que fosse. Um mico poeta não seria razoável. Tá legal. Admito que também não é razoável estar conversando com você sobre Verlaine. Mas é que dei pra isto agora. Falo com as coisas (ah ! desculpa!) com os entes os mais disparatados. Você nem imagina as conversas que tenho com a samambaia da sala. Ora, sei lá eu por que! Não sou muito de analisar os porquês. Mas eu estava falando era de Verlaine: um dia vou ler para você algumas poesias dele. Claro, vou traduzir. Sempre traduzo poesias. Não de um idioma para outro, é verdade. Traduzo pra mim procurando nelas, o meu sentido. Em Verlaine não me encontro muito, é verdade, mas acho tão bonito. Madame Jacobina me apresentou. No Bennett e no Andrews. "Anne Marie! Allez au bureaux de D. Iracemá, avec zero!" Eu era um tanto endemoniada, sabe ? Mas adorava quando as aulas eram sobre poetas e quando ela não gritava: "La liaison, ma petite. Voyons!" Sei que você não entendeu. Mas não interessa, não. São só coisas lá da lembrança. Só interessam a mim mesma. Não sei o que foi feito dela. Da Madame. Claro que deve ter morrido. Mas tá vivendo agora na minha memória. Como eu vou viver um dia pra você. Você vai ler Verlaine ou quem sabe num dia chuvoso, vai lembrar-se de mim, né? Legal isto. Mais banana?! Olha que você vai passar mal. E eu não sei tratar de dor de barriga de mico. Tá legal. Só mais uma e por hoje chega. Olha! A chuva parou! Claro, deve ter parado para Verlaine também, em algum momento. Mas acho que não adiantou. Poetas são bambas em fazer o sentimento perdurar. A chuva lá dentro dele continuou caindo, triste, muito triste. É... é dose. Mas é bonito. O quê ? Existem sim outros poetas. Muitos outros. Lembrei de Verlaine por causa da chuva. Sempre me lembro dele quando chove. E aqui no Humaitá, chove muito, você já reparou? Não, meu caro! Verlaine não conheceu o Humaitá! Desconfio que nem sabia do Brasil. Mas hoje, meu querido, ele está aqui”. 

2005

2 comentários:

  1. Adorei sua conversa com o mico poeta, ou com o poeta e o mico...mas estou com saudades. Quero conversar também.

    Bjs
    Suzana

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  2. Que bom que você gostou, Suzana. Os micos são íntimos já faz tempo. Só não sei são sempre os mesmos!

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