O
celular toca, a neta abre a bolsa e dela retira o objeto de fascinação e
desejo: a agenda! Ela nunca teve uma. Pode uma coisa destas? Também, por que
teria? Compromissos, para ela, eram coisas tão previsíveis, que seria perda de
tempo anotar. Durante anos tudo acontecia em dias certos, sequentes e consequentes sempre na companhia do marido ou dos filhos, agora acrescidos de
noras, genros e netos. Mas a neta, essa sim, era uma profissional de
compromissos. Os tinha variados, misteriosos, fascinantes. E como conhecia
gente, Meu Deus! Telefone preso entre o ombro e o queixo a neta deixa pequenos
papeis espalharam-se pelo chão na abertura daquele objeto incrível. É sempre
assim e nunca entendeu por quê. Se a agenda é para anotar, porque as anotações
nesses papéis não são transcritas na dita? Nunca perguntou. Vai ver existe uma
lógica moderna e atual e ela é que não vai dar atestado de desatualizada. Já
chega os que passa sem querer, como outro dia ocorreu ao pedir Antiflogistine
na farmácia! Já não se fabrica há mais de
20 anos, disse o surpreso farmacêutico. Observa a neta que escuta o
interlocutor, franzindo a testa. Deve ser importante! Não dá para saber do quê se trata: uma
sucessão de “hum” e “sei” e “tá” provocam o passar de páginas, consultas e
anotações frenéticas. De repente uma frase: tá
difícil de encaixar. Mas acho que dá na terça, às 4 horas. Morre de inveja.
Se fosse ela poderia ser qualquer dia a qualquer hora. A neta parte frenética e
ela fica matutando. Uma ideia insidiosa começa a martelar: para ter uma agenda
basta ir à papelaria. Descarta com vigor a informação de que nada teria para
anotar e... parte para ação. Na papelaria, um enorme problema. Estamos em pleno
mês de outubro e a mocinha solícita informa: ainda não recebemos. Foi aí, neste exato momento, que ela
incorporou a personagem. Num tom firme e nada dela, informa: minha querida. Imagina que transtorno! Perdi
a minha, repleta de anotações. Não sei o que vai ser de minha vida daqui pra
frente. Pelo menos esta última declaração é verdade! Sabe-se lá o que esta
personagem, que acaba de assumir, será capaz de fazer. Agenda desenterrada do
depósito, parte célere para casa. Foi-se quase em claro a “noite das
anotações”. Preenche cada página com compromissos escalafobéticos, nomes
inventados, horários absurdos. Inclui entre as páginas papeis avulsos, de cores
e tamanhos diferentes, onde caprichosamente faz anotações, por falta de outras,
de nomes de remédios e números de telefone aos quais atribui diferentes DDD e
DDI. Até da Polônia! Antes de fechar os olhos, dia quase amanhecendo, no
conforto da cama, passa gostosamente as páginas corrigindo anotações, agregando
outras e eliminando com um risco algumas. A caneta cai das mãos e ela dorme
sorrindo. Acorda de um salto. Olha o relógio, aflita. Está atrasada para o
grande evento. Rápida, inicia a produção, criando a indumentária da personagem.
Busca no guarda roupas aquele conjunto que nunca usou presente da nora que
nunca acerta. Bendita menina. Penitencia-se: tem sido injusta com ela. Vai ter
que mudar isto. Olha-se no espelho. Perfeita! Está perfeita! O sapato incomoda
um pouco (é aquele que achava alto demais), mas é mais que adequado. Olha o
relógio e parte aflita para o palco. A platéia já deve estar presente. Fica em
dúvida: Citybank ou Banco do Brasil? Decide-se ao dar o endereço para o táxi:
Banco do Brasil. Demanda a porta giratória com um andar que lhe parece ser
executivo. A porta giratória emperra. Esqueceu de depositar o celular na
entrada (instrumento indispensável à performance que vai ter início). Já
dentro, celular na mão, examina o cenário. Respira aliviada. Está tudo como ela
imaginou: uma mesa vazia encontra-se bem ao lado da fila de espectadores que já
se formou frente aos caixas. Instala-se e parte para a cena 1. Liga para a
filha, falando baixinho: meu bem,
telefona para o meu celular, já. Acho que está com problema. Desliga e
aumenta o som da campainha que soa dando início à cena 2. Olha o visor e faz
uma expressão de resignação. Atende falando baixo: obrigada meu bem. Está tudo certo. Desliga, num movimento
disfarçado, liga novamente para evitar qualquer chamada da filha que não deve
ter entendido o abrupto desligamento. Continua falando, agora alto: sim, Medeiros? Finge ouvir. Prende o
telefone entre o ombro e o queixo e tira a agenda da bolsa! Inicia-se a cena 3:
começa a virar as páginas, numa busca frenética, enquanto os pequenos papeis
avulsos caem sobre o chão. Profere vários “hum”, “sei”, “tá”, coroados por um
enfático “não!” e olha disfarçadamente para os espectadores. Maravilha! Estão
fascinados por seu desempenho! Anima-se e rabisca alguma coisa numa das folhas
riscando energicamente outra. Sorri resignada e profere a frase milionária: está bom, Medeiros, vou dar um jeito de
encaixar você. Amanhã às cinco. Mas olha, só tenho uns vinte minutos!
Desliga e simula uma nova ligação: sinto
muito, Gonçalves! Vamos ter que atrasar de uns vinte minutos nossa reunião.
Escuta ainda rabiscando a agenda. Volta a falar: fique tranqüilo. Vou estar lá. Desliga, faz algumas anotações e
curva-se para apanhar os papeis que caíram (aí, minha coluna!), consultando
alguns, com expressões diversas. Coloca-os entre as páginas e com um suspiro de
alívio recoloca a agenda na bolsa. Sai lépida e feliz pensando: amanhã vou ao
Citybank!
2005
Belo texto...adorei... Estou aqui lendo-o porque o vi numa indicação do facebook...
ResponderExcluirQue pena hoje os celulares não serem mais permitidos dentro dos bancos... adoraria assistir uma performance assim... Parabéns pela criatividade e pelas palavras.
Anna maria,
ResponderExcluirComo sempre gostei da sua escrita. Os compromissos da vovo lhe dao outra vida.
Ari
Jose arimateia da silva