sexta-feira, julho 26, 2013

UM NOVO SENTIDO À VIDA

O celular toca, a neta abre a bolsa e dela retira o objeto de fascinação e desejo: a agenda! Ela nunca teve uma. Pode uma coisa destas? Também, por que teria? Compromissos, para ela, eram coisas tão previsíveis, que seria perda de tempo anotar. Durante anos tudo acontecia em dias certos, sequentes e consequentes  sempre na companhia do marido ou dos filhos, agora acrescidos de noras, genros e netos. Mas a neta, essa sim, era uma profissional de compromissos. Os tinha variados, misteriosos, fascinantes. E como conhecia gente, Meu Deus! Telefone preso entre o ombro e o queixo a neta deixa pequenos papeis espalharam-se pelo chão na abertura daquele objeto incrível. É sempre assim e nunca entendeu por quê. Se a agenda é para anotar, porque as anotações nesses papéis não são transcritas na dita? Nunca perguntou. Vai ver existe uma lógica moderna e atual e ela é que não vai dar atestado de desatualizada. Já chega os que passa sem querer, como outro dia ocorreu ao pedir Antiflogistine na farmácia! Já não se fabrica há mais de 20 anos, disse o surpreso farmacêutico. Observa a neta que escuta o interlocutor, franzindo a testa. Deve ser importante!  Não dá para saber do quê se trata: uma sucessão de “hum” e “sei” e “tá” provocam o passar de páginas, consultas e anotações frenéticas. De repente uma frase: tá difícil de encaixar. Mas acho que dá na terça, às 4 horas. Morre de inveja. Se fosse ela poderia ser qualquer dia a qualquer hora. A neta parte frenética e ela fica matutando. Uma ideia insidiosa começa a martelar: para ter uma agenda basta ir à papelaria. Descarta com vigor a informação de que nada teria para anotar e... parte para ação. Na papelaria, um enorme problema. Estamos em pleno mês de outubro e a mocinha solícita informa: ainda não recebemos. Foi aí, neste exato momento, que ela incorporou a personagem. Num tom firme e nada dela, informa: minha querida. Imagina que transtorno! Perdi a minha, repleta de anotações. Não sei o que vai ser de minha vida daqui pra frente. Pelo menos esta última declaração é verdade! Sabe-se lá o que esta personagem, que acaba de assumir, será capaz de fazer. Agenda desenterrada do depósito, parte célere para casa. Foi-se quase em claro a “noite das anotações”. Preenche cada página com compromissos escalafobéticos, nomes inventados, horários absurdos. Inclui entre as páginas papeis avulsos, de cores e tamanhos diferentes, onde caprichosamente faz anotações, por falta de outras, de nomes de remédios e números de telefone aos quais atribui diferentes DDD e DDI. Até da Polônia! Antes de fechar os olhos, dia quase amanhecendo, no conforto da cama, passa gostosamente as páginas corrigindo anotações, agregando outras e eliminando com um risco algumas. A caneta cai das mãos e ela dorme sorrindo. Acorda de um salto. Olha o relógio, aflita. Está atrasada para o grande evento. Rápida, inicia a produção, criando a indumentária da personagem. Busca no guarda roupas aquele conjunto que nunca usou presente da nora que nunca acerta. Bendita menina. Penitencia-se: tem sido injusta com ela. Vai ter que mudar isto. Olha-se no espelho. Perfeita! Está perfeita! O sapato incomoda um pouco (é aquele que achava alto demais), mas é mais que adequado. Olha o relógio e parte aflita para o palco. A platéia já deve estar presente. Fica em dúvida: Citybank ou Banco do Brasil? Decide-se ao dar o endereço para o táxi: Banco do Brasil. Demanda a porta giratória com um andar que lhe parece ser executivo. A porta giratória emperra. Esqueceu de depositar o celular na entrada (instrumento indispensável à performance que vai ter início). Já dentro, celular na mão, examina o cenário. Respira aliviada. Está tudo como ela imaginou: uma mesa vazia encontra-se bem ao lado da fila de espectadores que já se formou frente aos caixas. Instala-se e parte para a cena 1. Liga para a filha, falando baixinho: meu bem, telefona para o meu celular, já. Acho que está com problema. Desliga e aumenta o som da campainha que soa dando início à cena 2. Olha o visor e faz uma expressão de resignação. Atende falando baixo: obrigada meu bem. Está tudo certo. Desliga, num movimento disfarçado, liga novamente para evitar qualquer chamada da filha que não deve ter entendido o abrupto desligamento. Continua falando, agora alto: sim, Medeiros? Finge ouvir. Prende o telefone entre o ombro e o queixo e tira a agenda da bolsa! Inicia-se a cena 3: começa a virar as páginas, numa busca frenética, enquanto os pequenos papeis avulsos caem sobre o chão. Profere vários “hum”, “sei”, “tá”, coroados por um enfático “não!” e olha disfarçadamente para os espectadores. Maravilha! Estão fascinados por seu desempenho! Anima-se e rabisca alguma coisa numa das folhas riscando energicamente outra. Sorri resignada e profere a frase milionária: está bom, Medeiros, vou dar um jeito de encaixar você. Amanhã às cinco. Mas olha, só tenho uns vinte minutos! Desliga e simula uma nova ligação: sinto muito, Gonçalves! Vamos ter que atrasar de uns vinte minutos nossa reunião. Escuta ainda rabiscando a agenda. Volta a falar: fique tranqüilo. Vou estar lá. Desliga, faz algumas anotações e curva-se para apanhar os papeis que caíram (aí, minha coluna!), consultando alguns, com expressões diversas. Coloca-os entre as páginas e com um suspiro de alívio recoloca a agenda na bolsa. Sai lépida e feliz pensando: amanhã vou ao Citybank!

2005 



2 comentários:

  1. Belo texto...adorei... Estou aqui lendo-o porque o vi numa indicação do facebook...
    Que pena hoje os celulares não serem mais permitidos dentro dos bancos... adoraria assistir uma performance assim... Parabéns pela criatividade e pelas palavras.

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  2. Anna maria,
    Como sempre gostei da sua escrita. Os compromissos da vovo lhe dao outra vida.
    Ari
    Jose arimateia da silva

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