Bento que bento é o frade, na boca do
forno. Forno! Assando um bolo. Bolo! Tudo que seu mestre mandar: “fazeremos”
todos. Sabe-se lá porquê não lhe sai da cabeça, há dias, a
cantilena da brincadeira de seus tempos de criança. A lembrança se faz sólida:
a mangueira, os barulhos da casa, a mãe na varanda, o cheiro de café, o domingo
amarelo de sol e de fios d’ovos. E lá estão eles, os primos, rodando em volta do anão do jardim. Ela também está lá, com aquele vestido rosa que a
avó bordou em casa de abelha. Chega mesmo a escutar sua voz, em meio a outras,
esganiçada, estridente: bento que bento é o frade. O
pequeno verso - percebe agora - propõe imensas dúvidas: que frade é esse? Por
que raios está assando um bolo? E quem é este mestre de tão imenso poder que
“fazeremos” tudo que ele mandar? E o porquê do “fazeremos”?! Coisa esquisita! O
pai e a mãe, tão ciosos do bem falar, nunca a haviam corrigido. Ora essa, censura-se: existem coisas mais importantes para pensar. De nada vale! O
“fazeremos” reboa em sua cabeça trazendo uma sensação de incômodo que ela não
sabe explicar. Desagradável mesmo. Vai ver está ficando esclerosada... Não!
Claro que não! Esclerosar é não lembrar... repetir... trocar... Lembrar, assim
sem parar, ela não sabe o que é. Uma obsessão, quem sabe. Mas obsessão a gente tem
em qualquer idade. Até uma criança pode ser obsessiva. Tem tanta gente
obsessiva. O cunhado! Ele é obsessivo! E é muito mais moço do que ela.
Aquela mania que tem de fazer com que ela se afogue diariamente em gotas de
florais! Que coisa! Mas ela obedece: pinga incessante e engole. Tudo para não
desgostar a irmã que mais é uma filha. Pinga zangada, pinga furiosa, pinga
revoltada... mas pinga. É um absurdo ficar fazendo o que não quer e... Meu
Deus! Como um raio, a terrível revelação! Passou a vida, uma vida inteira,
fazendo o que seu mestre mandava! A única imprecisão é o mestre. O correto
seria dizer os mestres que começam a desfilar em sua memória: o pai, primeiro
deles: tem que ser uma boa menina, tem que ter modos, tem gostar do primo João,
da tia Carlota, importa lá se cheira mal! Seguia-se a mãe, uma repetidora da
prepotência paterna, num tom mais suave do tem que comer espinafre! Levou anos,
mas anos mesmo, para poder, espantada, gostar de espinafre. O “tem que”
impossibilitava qualquer prazer. E os professores? Ai, meu Deus, os
professores! Tem que deixar uma margem de três centímetros. Bem que dava para
deixar quatro, ou dois, ou mesmo, num procedimento revolucionário, não deixar
margem alguma! Bem que dava! Lembra-se que ficava olhando, hipnotizada, aquela
zona proibida das folhas de papel ao maço. Engraçado... não ouviu mais falar em
papel ao maço. Vai ver, tem mais não.
Precisa conferir isso. De uns tempos para cá as coisas que existiam,
durante anos, em seu dia-a-dia, deram de sumir. Desaparecem, assim sem mais nem
menos e não se fala mais nisso. Será que os netos conhecem papel ao maço? Será
que alguém ainda se lembra? A Júlia, talvez. A irmã é apenas um pouco mais
moça. Cinco anos, se tanto. Mas está tão acabada... Volta ao papel ao maço e à
margem lá dele. Um dia, lembra-se, arriscou e colocou um pontinho na zona
proibida. Mínimo. Aquele pontinho foi, na vida, sua única manifestação de
vontade. De rebeldia. Pior era o namorado! Esse chegou às raias do absurdo: tem
que olhar só pra mim! E os anos passaram, sendo uma boa moça, comendo
espinafre, obedecendo às margens da vida e olhando apenas para o namorado,
depois noivo, depois marido. É... casou-se com ele. Pudera! Se não olhava para mais ninguém! Depois foram os filhos. Quando o
marido morreu um desfilar de “tem ques”, incoerentes, discordantes absurdos,
que os filhos, despudorados, discutiam como se ela, presente, fosse incapaz de
sequer participar da conversa: ela tem que sair dessa casa!! Tem que coisa
nenhuma! Ela tem é que contratar uma acompanhante! Isso sim! Melhor ela ir para
um apart-hotel. De jeito nenhum, ela tem que...
“Ela”, era ela! Ali, paradona, besteirona, ouvindo decisões sobre seus
dias futuros, esperando apenas o veredicto do filho que proferisse o “tem que”
vencedor. Um sentimento novo, desconhecido e extraordinariamente estimulante
começa a tomar conta dela. É raiva! Muita raiva! Ela tem que! Já! Agora! Voa
para o telefone. Num tom de urgência, com uma voz firme, nunca dela, convoca os
filhos, um a um. Venha, já! O ineditismo da convocação e o silêncio com que
responde às aflitas indagações, fazem com que venham correndo. E ali estão,
distribuídos nas poltronas da sala, entreolhando-se, penalizados e preocupados,
pela suspeita que lhes causou a possibilidade da terrível verdade que não
verbalizam. Seu olhar percorre os rostos ansiosos e neles vê apenas crianças.
Lindas, adoráveis e ingênuas crianças! Se enternece e enxuga uma lágrima.
Assustados, eles precipitam-se para ela. Num tom severo, definitivo, exige: fiquem onde estão! Apavorados,
eles retornam a seus lugares. Ela respira fundo e dispara o tiro: não me interessa quem é o frade, por que
está na boca do forno e muito menos se faz ou não um bolo. Decidi que nunca mais, nunca mais mesmo, “fazerei” nada do que “tem que”, ouviram?! Sorrindo em
beatitude, levanta-se e sai lépida da sala, passando a mão leve, tão leve
quanto a alma, em cada uma das cabeças estarrecidas.
2005
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