quinta-feira, julho 25, 2013

TUDO QUE SEU MESTRE MANDAR

Bento que bento é o frade, na boca do forno. Forno! Assando um bolo. Bolo! Tudo que seu mestre mandar: “fazeremos todos. Sabe-se lá porquê não lhe sai da cabeça, há dias, a cantilena da brincadeira de seus tempos de criança. A lembrança se faz sólida: a mangueira, os barulhos da casa, a mãe na varanda, o cheiro de café, o domingo amarelo de sol e de fios d’ovos. E lá estão eles, os primos, rodando  em volta do anão do jardim. Ela também está lá, com aquele vestido rosa que a avó bordou em casa de abelha. Chega mesmo a escutar sua voz, em meio a outras, esganiçada, estridente: bento que bento é o frade. O pequeno verso - percebe agora - propõe imensas dúvidas: que frade é esse? Por que raios está assando um bolo? E quem é este mestre de tão imenso poder que “fazeremos” tudo que ele mandar? E o porquê do “fazeremos”?! Coisa esquisita! O pai e a mãe, tão ciosos do bem falar, nunca a haviam corrigido. Ora essa, censura-se: existem coisas mais importantes para pensar. De nada vale! O “fazeremos” reboa em sua cabeça trazendo uma sensação de incômodo que ela não sabe explicar. Desagradável mesmo. Vai ver está ficando esclerosada... Não! Claro que não! Esclerosar é não lembrar... repetir... trocar... Lembrar, assim sem parar, ela não sabe o que é. Uma obsessão, quem sabe. Mas obsessão a gente tem em qualquer idade. Até uma criança pode ser obsessiva. Tem tanta gente obsessiva. O cunhado! Ele é obsessivo! E é muito mais moço do que ela. Aquela mania que tem de fazer com que ela se afogue diariamente em gotas de florais! Que coisa! Mas ela obedece: pinga incessante e engole. Tudo para não desgostar a irmã que mais é uma filha. Pinga zangada, pinga furiosa, pinga revoltada... mas pinga. É um absurdo ficar fazendo o que não quer e... Meu Deus! Como um raio, a terrível revelação! Passou a vida, uma vida inteira, fazendo o que seu mestre mandava! A única imprecisão é o mestre. O correto seria dizer os mestres que começam a desfilar em sua memória: o pai, primeiro deles: tem que ser uma boa menina, tem que ter modos, tem gostar do primo João, da tia Carlota, importa lá se cheira mal! Seguia-se a mãe, uma repetidora da prepotência paterna, num tom mais suave do tem que comer espinafre! Levou anos, mas anos mesmo, para poder, espantada, gostar de espinafre. O “tem que” impossibilitava qualquer prazer. E os professores? Ai, meu Deus, os professores! Tem que deixar uma margem de três centímetros. Bem que dava para deixar quatro, ou dois, ou mesmo, num procedimento revolucionário, não deixar margem alguma! Bem que dava! Lembra-se que ficava olhando, hipnotizada, aquela zona proibida das folhas de papel ao maço. Engraçado... não ouviu mais falar em papel ao maço. Vai ver, tem mais não.  Precisa conferir isso. De uns tempos para cá as coisas que existiam, durante anos, em seu dia-a-dia, deram de sumir. Desaparecem, assim sem mais nem menos e não se fala mais nisso. Será que os netos conhecem papel ao maço? Será que alguém ainda se lembra? A Júlia, talvez. A irmã é apenas um pouco mais moça. Cinco anos, se tanto. Mas está tão acabada... Volta ao papel ao maço e à margem lá dele. Um dia, lembra-se, arriscou e colocou um pontinho na zona proibida. Mínimo. Aquele pontinho foi, na vida, sua única manifestação de vontade. De rebeldia. Pior era o namorado! Esse chegou às raias do absurdo: tem que olhar só pra mim! E os anos passaram, sendo uma boa moça, comendo espinafre, obedecendo às margens da vida e olhando apenas para o namorado, depois noivo, depois marido. É... casou-se com ele. Pudera! Se não olhava para mais ninguém! Depois foram os filhos. Quando o marido morreu um desfilar de “tem ques”, incoerentes, discordantes absurdos, que os filhos, despudorados, discutiam como se ela, presente, fosse incapaz de sequer participar da conversa: ela tem que sair dessa casa!! Tem que coisa nenhuma! Ela tem é que contratar uma acompanhante! Isso sim! Melhor ela ir para um apart-hotel. De jeito nenhum, ela tem que...  “Ela”, era ela! Ali, paradona, besteirona, ouvindo decisões sobre seus dias futuros, esperando apenas o veredicto do filho que proferisse o “tem que” vencedor. Um sentimento novo, desconhecido e extraordinariamente estimulante começa a tomar conta dela. É raiva! Muita raiva! Ela tem que! Já! Agora! Voa para o telefone. Num tom de urgência, com uma voz firme, nunca dela, convoca os filhos, um a um. Venha, já! O ineditismo da convocação e o silêncio com que responde às aflitas indagações, fazem com que venham correndo. E ali estão, distribuídos nas poltronas da sala, entreolhando-se, penalizados e preocupados, pela suspeita que lhes causou a possibilidade da terrível verdade que não verbalizam. Seu olhar percorre os rostos ansiosos e neles vê apenas crianças. Lindas, adoráveis e ingênuas crianças! Se enternece e enxuga uma lágrima. Assustados, eles precipitam-se para ela. Num tom severo, definitivo, exige: fiquem onde estão! Apavorados, eles retornam a seus lugares. Ela respira fundo e dispara o tiro: não me interessa quem é o frade, por que está na boca do forno e muito menos se faz ou não um bolo. Decidi que nunca mais, nunca mais mesmo, “fazerei” nada do que “tem que”, ouviram?! Sorrindo em beatitude, levanta-se e sai lépida da sala, passando a mão leve, tão leve quanto a alma, em cada uma das cabeças estarrecidas.
2005



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