Televisão
não é minha praia. Nada contra. Nada mesmo. Mas, como a coca-cola, surgiu em
minha vida quando outros hábitos e manias já haviam se instalado para ficar.
Vai daí que ao invés de, os momentos que sobravam eram ocupados por livros,
música, guaraná, teatro e cinema. Ah! O cinema! A mágica da tela grande e do
escuro não tem igual. Mas após o advento da aposentadoria e da situação de
“nouveau pauvre”, em que esta me colocou, a TV
substituiu com grande perda, o teatro e o cinema. Mesmerizada, frente à
telinha, vejo o desfilar de extraordinários personagens que a ficção teria
dificuldade em tornar verossímeis. Não creio que exista, na história da
dramaturgia, obra que apresente tão extraordinária concentração de personagens
desqualificados. Exemplos vivos da mentira, da inveja, da dissimulação, do
autoritarismo, do orgulho, do cinismo, do estrelismo, da incompetência e que
mais sei eu, exibem-se despidos de qualquer censura. E o mais triste é que se
trata de senhores e senhoras responsáveis pela gestão deste País tão belo; pela
elaboração de leis e regulamentos que deverão ser seguidos por todos nós; pelo
cuidado que deveriam merecer a educação e a saúde; pela segurança do povo e por
ai vai. Exceções existem, é claro. Mas são tão poucas! E são estas que me fazem
lembrar – e com muita saudade – de Seu Teófilo. Pois foi ele que, falando com
sua voz doce e calma, vinda de um passado tão longínquo, conseguiu me orientar
neste emaranhado de desvios de caráter e de incompetência.
Seu
Teófilo media cerca de um metro e meio e era capataz do sítio de minha ria e
madrinha. Com o passar dos anos – acho - a altura já não era mais a mesma.
Encolheu. Ou melhor, gastou. Explico: os membros da geração acima da minha
gastaram Seu Teófilo de tanto fazê-lo rodar pelo sítio cumprindo as mais
diferentes tarefas. Seu Teófilo fazia “de um tudo”. À medida que diminuía,
crescíamos nós – as primas e eu - amparadas por aquele homenzinho que parecia
ter o dom da onipresença: estava sempre ao lado quando dele precisávamos. Desde
que posso me lembrar, Seu Teófilo nos socorria acompanhando a evolução de
nossas necessidades através dos tempos: pegava cavalos no pasto quando ainda
não o podíamos fazer; arriava a charrete para que fossemos a estação esperar o
trem que trazia o Gibi e o Mirim – revistas de quadrinhos indispensáveis à
vida; levava bilhetes proibidos e apaixonados para os secretos namorados e nos
acompanhava, noite adentro, acalmando-nos no nascimento de um potro. Sempre me
pareceu que Seu Teófilo seria capaz de resolver qualquer problema. Pois não foi
ele que conseguiu salvar-me de ser lancetada por um dos tios médicos para
retirada de um berne? Uma pasta de toucinho e fumo de rolo fez com o que o dito
berne procurasse outras paragens saindo sem dor, nem trauma. Sou grata até
hoje. Foi também ele que salvou a vida de Ventania, belo alazão, dado como
perdido pelo veterinário, ministrando na madrugada garrafadas de ervas
misteriosas. “Ele vai aprumá, meninas. Carece chorar, não”. Deitado que
estava Ventania levantou-se lépido, depois de uma semana.
Além
de tudo isto Seu Teófilo era filósofo. Analfabeto, mas filósofo. Explicava a
vida como ninguém. Já adulta uma das primas, aquela que para mim era uma irmã,
foi presenteada por um amigo com uma planta
extraordinária. A esta altura, eu ainda era convidada aquele sitio que junto ao
de minha avó (que considerava meu) havia iluminado minha infância e
adolescência. Heranças e venda sucessivas ocorridas na família havia
transformado a prima e irmã em única proprietária. E, sempre que eu por lá ia,
admirava o crescer da planta aguardando ansiosa o brotar da flor que só
havíamos visto em fotografia. Seu Teófilo já bem velhinho ainda estava por lá,
só sendo acionado em assuntos da mais alta gravidade. Numa de minhas idas
fomos, minha prima e eu, observar a planta e, apavoradas, vimos que as folhas
estavam cobertas de manchas surgidas da noite para o dia. Não estavam lá na
véspera, garantiu-me a prima. Em pânico e em uníssono berramos por Seu Teófilo.
E ele veio no seu passinho miúdo e calmo. Em silêncio respeitoso observamos o
que nos pareceu um ritual: ele delicadamente cortou uma da folhas, olhando-a
com extrema severidade; cheirou, franziu a testa e colocou a ponta da língua na
mancha, saboreou o gosto e... abriu um
sorriso de desdém. O veredicto veio em tom de reprimenda: Homi, meninas!
Isto é da propi planta! Esta desinfeliz nasceu pra sê manchada. Devêra de ser
assim mesmo. Se ocês não qué vê mancha ranca ela, ué! E trata de prantá
as que não tem precisão de mancha. Tenho é mais o que faze! E se foi,
indignado de ter sido perturbado pelo óbvio.
É,
Seu Teófilo! As manchas que vejo exibidas nos personagens de que falei vêem da “propi”
planta. O jeito é “rancá” e “prantá” outros.
2005
Anna Maria,
ResponderExcluirPrecisamos do Seu Teófilo para arrancar as ervas daninhas que temos em nosso pais. Levei um tempo para entender que quando a gente se aposenta, se torna o "novo pobre"...
Um grande abraço
Ari
José Arimateia da Silva - 84-9115-1601
Você está certo Ari, É necessário que surjam muitos Seu Teófilo para proceder a esta limpeza das ervas daninhas que nos sufocam.
ExcluirAbraços
Anna Maria