sábado, julho 20, 2013

DA ARTE DE ANDAR

A médica foi peremptória: tem que andar! Espantou-se. Ora, ela sempre andou. Isto é, a partir de certa idade que não sabe precisar bem. Nunca lhe foi informado e muito menos comentado este evento. Possivelmente porque nela não se revelou a mesma precocidade do irmão. Ele andou aos 8 meses e 20 dias!! É possível até, que no seu caso, isto tenha se dado com certo atraso já que foi assunto nunca ventilado nas conversas da mãe e das tias sobre os feitos dos respectivos bebês.  Nelas – nas conversas, na mãe e nas tias – evidenciava-se a competição pelo primeiro lugar em tudo: ações, características físicas, ditos, tudo servia para estabelecer o ranking primal. Tem que confessar envergonhada: raramente ocupou o primeiro lugar em qualquer modalidade. Lembra-se apenas de haver sido dito que aos seis meses era ela a mais gorda. Chato, né?
Mas voltando ao andar. É certo que sempre havia andado. Há bem mais de 70 anos. Às vezes vacila, mas com certeza anda. Pelo menos, pensava ela, era isto que fazia ao exercitar o verbo. Mas o andar a que a médica referia-se não era bem o que sempre praticou. Esta atividade que lhe parecia tão simples revestia-se agora de regras precisas: 20 minutos, pela manhã, antes do sol forte, três vezes por semana, sem parar, mantendo ritmo e rapidez. Na Lagoa, na praia ou no Jardim Botânico. E agora esta! É verdade que por vezes andou nestes locais. Mas, rotineiramente, faz isto em outros lugares não citados. Feira, por exemplo. Será que não pode? De qualquer modo parecia simples, assim à primeira vista. Mas... “antes do sol forte” significava, no verão, antes de 8 horas da manhã. Fez os cálculos: acordar, vestir-se, escovar os dentes, tomar café... e chegar a um destes lugares onde se “anda”. Cruzes! Olha só a hora que vai ter que acordar! Jardim Botânico, que adora, ficou automaticamente descartado. Não conseguia se imaginar naquela correria lá por dentro.  Não ia poder ver nada, bolas! Praia? Todo mundo caindo n’água e ela se esbofando? Eu, heim?! Sobrou a Lagoa. Tudo bem, pensou. Lagoa será. Resolvido. Mas resolvido nada estava.
Inadvertidamente comenta com as netas que passaria a andar três vezes por semana, na Lagoa.  Foi aí que a coisa pegou! Sem que tivesse se apercebido existia agora, um andar profissional, seguindo preceitos técnicos nunca imaginados por ela. De saída as meninas comentam com desprezo, as instruções da médica: vinte minutos?! Como vinte minutos?! Isto não significa nada, absolutamente nada! E vem a informação precisa: 3.200 metros, em meia hora, é o mínimo aceitável! A unidade de medida (metros) tende a adoçar o entendimento de que, na realidade, estão falando de quilômetros! E o tênis? Não pode ser um tênis qualquer. Escuta, embasbacada um desfilar de marcas e dentro das marcas nomes estrambóticos. “Você pisa para dentro ou para fora?” Humilhada confessa não ter a menor idéia. Passou a vida pisando apenas. Uma das netas declara: precisa comprar roupas adequadas. Para andar? Pra quê, gente? Nesta correria ninguém vai reparar. E afinal tem as duas calças jeans que... Gritos de horror: “calças jeans?! Você está louca? Para andar?!!!” Entreolham-se pasmadas. Mas não tanto quanto ela: é um espanto! Não se pode andar de calças Jeans! Caramba! Rindo as duas comentam: “imagina fazer alongamento metida em Jeans!” Timidamente, arrisca: “mas eu não vou fazer alongamento...  eu...”. “Vai arrumar um problema muscular, isto sim! É isto que você quer?” Não! Positivamente não é isto que quer.  
Despacha as netas prometendo ir com elas no dia seguinte a um shopping para providenciar os “com que” andar e, ainda, na volta, aprender e treinar a série de exercícios de alongamento que deverá fazer antes de iniciar a maratona.
O elevador engole as moças e do hall ela ainda escuta a discussão sobre o melhor tênis. Entra em casa e começa a percorrer todos os cômodos, olhando os pés. De repente, o andar torna-se inconfortável. Tem alguma coisa errada. Um susto: os pés não estão paralelos. É isto. O esquerdo volta-se ligeiramente para dentro enquanto o direito vai na reta. Força o paralelismo e o direito, adquirindo vida própria, volta-se para fora num desvio monumental. Droga! Senta-se e coloca os pés milimetricamente alinhados. Respira fundo: é agora! Levanta-se e dá dois passos Saíram de prumo! Corre para o quarto. Põe um par de tênis que nunca usa. É isto. Para andar tem que se usar tênis. Marcha em direção à cozinha, olhando para os pés. Bate com a cabeça na porta do armário que deixou aberta. Esta porcaria de tênis está prendendo no chão. Remove os ditos e parte descalça. Piorou. Percebe que o pé direito levanta-se menos que o esquerdo que começou a doer. Pára e corre para o telefone...     
“É urgente, é urgentíssimo!” Alarmada a atendente aciona a médica que profissionalmente aflita, interpela: “O que está havendo?”. E ela: “será que não posso fazer outra coisa ao invés de andar? Já não tenho mais idade para isto!”


2004

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