A médica foi
peremptória: tem que andar! Espantou-se. Ora, ela sempre andou. Isto é, a
partir de certa idade que não sabe precisar bem. Nunca lhe foi informado e
muito menos comentado este evento. Possivelmente porque nela não se revelou a
mesma precocidade do irmão. Ele andou aos 8 meses e 20 dias!! É possível até,
que no seu caso, isto tenha se dado com certo atraso já que foi assunto nunca
ventilado nas conversas da mãe e das tias sobre os feitos dos respectivos
bebês. Nelas – nas conversas, na mãe e
nas tias – evidenciava-se a competição pelo primeiro lugar em tudo: ações,
características físicas, ditos, tudo servia para estabelecer o ranking primal.
Tem que confessar envergonhada: raramente ocupou o primeiro lugar em qualquer
modalidade. Lembra-se apenas de haver sido dito que aos seis meses era ela a
mais gorda. Chato, né?
Mas voltando ao
andar. É certo que sempre havia andado. Há bem mais de 70 anos. Às vezes
vacila, mas com certeza anda. Pelo menos, pensava ela, era isto que fazia ao
exercitar o verbo. Mas o andar a que a médica referia-se não era bem o que
sempre praticou. Esta atividade que lhe parecia tão simples revestia-se agora
de regras precisas: 20 minutos, pela manhã, antes do sol forte, três vezes por
semana, sem parar, mantendo ritmo e rapidez. Na Lagoa, na praia ou no Jardim
Botânico. E agora esta! É verdade que por vezes andou nestes locais. Mas,
rotineiramente, faz isto em outros lugares não citados. Feira, por exemplo.
Será que não pode? De qualquer modo parecia simples, assim à primeira vista.
Mas... “antes do sol forte” significava, no verão, antes de 8 horas da manhã.
Fez os cálculos: acordar, vestir-se, escovar os dentes, tomar café... e chegar
a um destes lugares onde se “anda”. Cruzes! Olha só a hora que vai ter que
acordar! Jardim Botânico, que adora, ficou automaticamente descartado. Não
conseguia se imaginar naquela correria lá por dentro. Não ia poder ver nada, bolas! Praia? Todo
mundo caindo n’água e ela se esbofando? Eu, heim?! Sobrou a Lagoa. Tudo bem,
pensou. Lagoa será. Resolvido. Mas resolvido nada estava.
Inadvertidamente
comenta com as netas que passaria a andar três vezes por semana, na Lagoa. Foi aí que a coisa pegou! Sem que tivesse se
apercebido existia agora, um andar profissional, seguindo preceitos técnicos nunca
imaginados por ela. De saída as meninas comentam com desprezo, as instruções da
médica: vinte minutos?! Como vinte minutos?! Isto não significa nada,
absolutamente nada! E vem a informação precisa: 3.200 metros, em meia hora, é o
mínimo aceitável! A unidade de medida (metros) tende a adoçar o entendimento de
que, na realidade, estão falando de quilômetros! E o tênis? Não pode ser um
tênis qualquer. Escuta, embasbacada um desfilar de marcas e dentro das marcas
nomes estrambóticos. “Você pisa para dentro ou para fora?” Humilhada confessa
não ter a menor idéia. Passou a vida pisando apenas. Uma das netas declara:
precisa comprar roupas adequadas. Para andar? Pra quê, gente? Nesta correria
ninguém vai reparar. E afinal tem as duas calças jeans que... Gritos de horror:
“calças jeans?! Você está louca? Para andar?!!!” Entreolham-se pasmadas. Mas
não tanto quanto ela: é um espanto! Não se pode andar de calças Jeans! Caramba!
Rindo as duas comentam: “imagina fazer alongamento metida em Jeans!”
Timidamente, arrisca: “mas eu não vou fazer alongamento... eu...”. “Vai arrumar um problema muscular,
isto sim! É isto que você quer?” Não! Positivamente não é isto que quer.
Despacha as
netas prometendo ir com elas no dia seguinte a um shopping para providenciar os
“com que” andar e, ainda, na volta, aprender e treinar a série de exercícios de
alongamento que deverá fazer antes de iniciar a maratona.
O elevador engole as moças e do
hall ela ainda escuta a discussão sobre o melhor tênis. Entra em casa e começa
a percorrer todos os cômodos, olhando os pés. De repente, o andar torna-se
inconfortável. Tem alguma coisa errada. Um susto: os pés não estão paralelos. É
isto. O esquerdo volta-se ligeiramente para dentro enquanto o direito vai na
reta. Força o paralelismo e o direito, adquirindo vida própria, volta-se para
fora num desvio monumental. Droga! Senta-se e coloca os pés milimetricamente
alinhados. Respira fundo: é agora! Levanta-se e dá dois passos Saíram de prumo!
Corre para o quarto. Põe um par de tênis que nunca usa. É isto. Para andar tem
que se usar tênis. Marcha em direção à cozinha, olhando para os pés. Bate com a
cabeça na porta do armário que deixou aberta. Esta porcaria de tênis está
prendendo no chão. Remove os ditos e parte descalça. Piorou. Percebe que o pé
direito levanta-se menos que o esquerdo que começou a doer. Pára e corre para o
telefone...
“É urgente, é
urgentíssimo!” Alarmada a atendente aciona a médica que profissionalmente
aflita, interpela: “O que está havendo?”. E ela: “será que não posso fazer
outra coisa ao invés de andar? Já não tenho mais idade para isto!”
2004
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