terça-feira, julho 16, 2013

PODE NÃO PODE

É espantoso como, ao ingressar na terceira idade, um verbo e sua negação – “poder e não poder” - passam a ter uma freqüência e uma intenção inteiramente diversa da de até então.  A coisa acontece de repente, sem aviso, e se instala no diário num desfilar de podes e não podes, mais das vezes formulados por outros, embora existam as próprias formulações surgidas por descobertas de situações e objetos que, até aquela data, não eram percebidos. Ou pelo menos não eram percebidos como indispensáveis à vida. Um desses é o corrimão. Como corrimão é importante, minha gente! A descida de uma escada sem corrimão provoca a antevisão de tragédias, que se desenrolam como num filme de terror, gerando pensamentos que surgem consequentes e dependentes uns dos outros, ao insegura e heroicamente pousar-se o pé em cada degrau: vou cair... vou quebrar o fêmur... vou ficar numa cama pra todo sempre... na verdade, pra todo sempre vai durar pouco porque, deitada, vou pegar pneumonia...  e vou morrer. Morri! A chegada em segurança ao piso mais baixo, provoca a raiva: Quem foi assassino que projetou esta escada sem corrimão?! E aí vem o verbo: eu não posso descer uma escada sem corrimão! Porque – tem que se ser honesta - outros podem. Lembra-se do tempo em que descia, com extrema competência, pulando dois degraus de cada vez e pasmem: correndo! Na verdade ninguém vai se pasmar. Todos fazem isto, sem se dar conta de que um dia não farão mais. Esses “não pode” - os da gente mesmo – até que são válidos. Digamos, são frutos de uma sábia tomada de consciência. Mas os outros – os dos outros – nem sempre. Com esta idade ela não pode fazer isto! O “isto” se aplica aos mais diversos “não pode”. Tem, ultimamente, catalogado alguns que são freqüentes e inventado outros que, se ainda não ouviu, são com certeza proferidos em algum lugar, por alguém. Ela, nessa idade, não pode usar mini-saia. Esta ouviu mesmo, outro dia, numa noite de autógrafos. Fazendo um parêntese, já repararam que existe um público específico para noites de autógrafos? É muito parecido com o de “vernissages”. As roupas, as frases e os olhares são espantosos. Parece que esta gente mora num armário que só os deixa sair nessas ocasiões. No tempo em que estão trancados devem se ocupar elucubrando as frases, inteligentes e herméticas, que soltam por ocasião do acontecimento que as libera para o mundo. Ninguém conseguiria inventá-las solto por aí. Mas voltando à mini-saia da velha. Desculpem! Ser politicamente correta impõe-se: quis dizer “voltando à mini-saia da senhora de terceira idade”. Pois é! Vejam só! A senhora estava de mini-saia! É... Parece que não pode. Olhou as pernas dela. Da velha. Até que eram bonitas. Mais bonitas do que muitas de outras mini-saias, não terceira idade, que saracoteavam nervosas, dizendo aquelas coisas inteligentes e herméticas. Mas foi assim que ficou sabendo e anotou no caderninho mental. Mini-saia não pode. Não que ela as use, mas sabe-se lá, um dia pode dar vontade. Mas não pode. Não pode e pronto! Mamãe, vai vir um dia, em que você não vai poder morar sozinha! A voz da filha é pra lá de carinhosa e “vai vir um dia” até que adoça a declaração. Fica na dúvida, anota ou não? Essa é dose! Será que não vou poder mesmo? Posso tomar uma acompanhante, sei lá eu. Ou ficar sozinha mesmo e eles (os filhos) ficam telefonando regularmente para ver se está tudo em ordem, quando não puderem passar para um cafezinho. Um sobressalto: eu vou poder fazer um cafezinho, não vou? Não vou poder?! Não?! Eu vou deixar o fogo aceso? Eu?! Incêndio?! No prédio todo?! Você acha, é?! Tá legal. Tem mesmo que ir para o caderninho. Incêndio é coisa séria. Mas ainda não veio esse dia, né? Não pode ir a baile funk. Essa ela inventou porque morre de vontade de ir a um baile funk. Mas algo lhe diz que não pode do mesmo modo que não pode voar de asa-delta. Vocês sabiam? Que coisa! Pois ela não sabia e inocentemente candidatou-se a um desses vôos duplos. Foi recusada. Humilhantemente recusada. Pensava que podia. Afinal seria apenas carregada e nenhuma ação me seria requerida. Achava ela... E se a senhora tiver um treco lá em cima?! Gente, eu nunca tive um treco. Quer dizer... não que me lembre. Acende um cigarro (que também não pode) e rememora a vida. Queda de pressão... é treco? Capaz... Mas eu sempre tive! Desde. Sei lá eu! Ah! A espinha de peixe... Foi... foi um treco. Dos maiores. Todo mundo dava palpite: levanta a cabeça! Levanta o braço esquerdo e abaixa a cabeça! Respira fundo e tosse! Pula num pé só esticando o pescoço. Bate nas costas dela! Aí não! Mais em cima! Alguém dá um murro nas costas. O garçom trouxe um copo d’água que a Isolda me entornou goela abaixo enquanto marido da dita gritava que era melhor miolo de pão que, misturado a água lhe entupiu mais ainda, somando-se ao sufoco. Mas, péra ai! Foi um treco ou um acidente? Acidente é treco? Mas ela nunca pensaria em lançar-me no azul comendo peixe. E treco não deve ser reservado à terceira idade. E os jovens, que também devem ter trecos lá na vida deles, estão se despencando sozinhos ou acompanhados pedra abaixo, gozando os prazeres do vôo que lhe é negado. Pena. Vai para o caderninho. Aza delta não pode. Tem outra coisa que, desconfia, não pode: ir ao cinema sozinha a partir da sessão das oito. Na sessão das duas, pode. Aliás, na sessão das duas “tem que”. Deve ser obrigatório, haja vista a quantidade de senhoras e senhores que a frequentam  Este público, que vai rareando à medida que os horários progridem, desaparece completamente, a partir das oito. A menos que estejam acompanhados por filhos, netos ou sobrinhos que, carinhosamente, os ajudam a descer as escadas (sem corrimão), na saída. Andar depressa na rua, não pode. Pode andar devagar. Se você andar depressa alguém sempre lança um olhar de censura. Mais das vezes muda. Mas uma vez, esta censura foi até verbalizada: vai cair, vovó! Sua resposta foi absurda e ilógica – vovó é a sua mãe! Mas ao que parece foi generosamente aceita, como ultimamente acontece com tudo que diz. Taí uma coisa que se pode: falar absurdos. Até espera-se isso: imagina só o que vovó me disse? Não se dão conta de que sempre disse dessa maneira. Mas vai daí que sempre fez tricô e crochê e, de repente, é informada de que é uma coisa que “agora pode”. Na ânsia de gerar alguma fonte de renda – ideia fixa depois que se tornou uma “nouveau pauvre” graças ao INSS – fica imaginando se haveria mercado para uma publicação “Pode Não Pode” para orientar a terceira idade, dirigindo-a a um comportamento adequado e aceito, evitando assim críticas dos que ainda não lá chegaram. Mas me diga lá, mocinha, não pode mini-saia mesmo?  Por que?


2004

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