CATARATA
A
frase vem firme, carregada de competência: a
senhora está com catarata senil. A expressão do rapaz é absurdamente
sorridente (é um médico, mas referir-se a ele como “rapaz”, lhe traz um sabor
de elegante vingança). Sufoca o ímpeto de responder com um “senil é a sua
avó!”. Mesmo porque ele provavelmente concordaria. Arruma o tom certo (entre
frio e calmo) e pergunta: não entendo o
senil... O tom da resposta é paciente, ela diria até resignado,
evidenciando que, do ponto de vista do "rapaz", sua senilidade
estende-se muito além da catarata: minha
senhora! É este o nome! Consegue que um fino sorriso escamoteie a raiva: mas desnecessário. Qualquer pessoa sabe o
que é simplesmente catarata. Ligeiramente irritado, ele esclarece: catarata senil é o nome desse tipo de
catarata! E, com desprezo, acrescenta: nome
científico, minha senhora! Seus olhos, que agora sabe senis, vagam pela
sala e pousam num exuberante vaso de margaridas amarelas: lindas as suas Crysanthemum Coronarium. O rapaz arregala os olhos.
Explica num tom doce: nome científico de
suas margaridas amarelas. Agora
francamente irritado, o rapaz revida: existe
uma grande variedade de cataratas. A sua... Corta brusca, já se levantando:
já entendi, é senil! Mas existe também
uma grande variedade de margaridas...
E lá vai ela pela rua, tropeçando e pensando (tanto os tropeços quanto os
pensamentos são causados pela catarata). Já em casa, bate a censura! Afinal é o
nome da coisa! Vai ao dicionário, em busca do “senil”. Não que ignore o
significado, mas quem sabe a definição será mais doce do que a agressão da
palavra. Senil: relativo à velhice e aos velhos, próprio da velhice, velho,
idoso, decrépito. Puxa! Sente-se culpada! Exceção feita ao “decrépito”, que lhe
parece um desagradável exagero, o resto se encaixava perfeitamente à sua
condição, já nem tão recente. Mas no
fundo, lá no fundo, julga ainda que não precisava o senil! Já que o dicionário
está em mãos, porque não olhar a palavra “velho”? Ela nunca havia feito isto.
Quem não sabe o significado de velho? Mas será que... A primeira definição
pareceu-lhe um tanto cretina: “que não é novo”. Uma obviedade desnecessária,
mesmo num dicionário que necessariamente tem de o ser. Logo depois: “que existe
há muito tempo”. As duas definições se aplicam a ela como uma luva e, num
silogismo verdadeiro, denunciam: quem existe há muito tempo é velho e senil;
existo há muito tempo; logo sou velha e senil. Não havia do que se ofender. O
“rapaz” tinha razão. Cientificamente, é claro.
2004
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