segunda-feira, julho 08, 2013

CATARATA

Este blog, é sim, uma experiência entre tantas outras que faço ao longo destes 83 anos. Durante alguns anos escrevi crônicas para o jornal virtual  Montbläat editado por meu muito querido amigo, Fritz Utzeri, já não mais entre nós. Ele insistia para que eu as divulgasse de maneira mais ampla. Nisso o acompanhavam amigos também muito queridos. Jamais o fiz, por não acreditar que um publico maior se interessaria por aquilo que para mim era apenas uma maneira de me fazer conhecida por minha descendência garantindo uma eternidade que me soa mais que agradável. Hoje, sei lá eu por eu razão, veio a vontade de experimentar. Vai dai que aqui serão diariamente postadas, na ordem em que foram escritas desde 2004 até que o tempo demonstre se tinha eu ou não razão de achar que não despertariam qualquer interesse.



                                                                  CATARATA


A frase vem firme, carregada de competência: a senhora está com catarata senil. A expressão do rapaz é absurdamente sorridente (é um médico, mas referir-se a ele como “rapaz”, lhe traz um sabor de elegante vingança). Sufoca o ímpeto de responder com um “senil é a sua avó!”. Mesmo porque ele provavelmente concordaria. Arruma o tom certo (entre frio e calmo) e pergunta: não entendo o senil... O tom da resposta é paciente, ela diria até resignado, evidenciando que, do ponto de vista do "rapaz", sua senilidade estende-se muito além da catarata: minha senhora! É este o nome! Consegue que um fino sorriso escamoteie a raiva: mas desnecessário. Qualquer pessoa sabe o que é simplesmente catarata. Ligeiramente irritado, ele esclarece: catarata senil é o nome desse tipo de catarata! E, com desprezo, acrescenta: nome científico, minha senhora! Seus olhos, que agora sabe senis, vagam pela sala e pousam num exuberante vaso de margaridas amarelas: lindas as suas Crysanthemum Coronarium. O rapaz arregala os olhos. Explica num tom doce: nome científico de suas margaridas amarelas.  Agora francamente irritado, o rapaz revida: existe uma grande variedade de cataratas. A sua... Corta brusca, já se levantando: já entendi, é senil! Mas existe também uma grande variedade de margaridas...  E lá vai ela pela rua, tropeçando e pensando (tanto os tropeços quanto os pensamentos são causados pela catarata). Já em casa, bate a censura! Afinal é o nome da coisa! Vai ao dicionário, em busca do “senil”. Não que ignore o significado, mas quem sabe a definição será mais doce do que a agressão da palavra. Senil: relativo à velhice e aos velhos, próprio da velhice, velho, idoso, decrépito. Puxa! Sente-se culpada! Exceção feita ao “decrépito”, que lhe parece um desagradável exagero, o resto se encaixava perfeitamente à sua condição, já nem tão recente.  Mas no fundo, lá no fundo, julga ainda que não precisava o senil! Já que o dicionário está em mãos, porque não olhar a palavra “velho”? Ela nunca havia feito isto. Quem não sabe o significado de velho? Mas será que... A primeira definição pareceu-lhe um tanto cretina: “que não é novo”. Uma obviedade desnecessária, mesmo num dicionário que necessariamente tem de o ser. Logo depois: “que existe há muito tempo”. As duas definições se aplicam a ela como uma luva e, num silogismo verdadeiro, denunciam: quem existe há muito tempo é velho e senil; existo há muito tempo; logo sou velha e senil. Não havia do que se ofender. O “rapaz” tinha razão. Cientificamente, é claro.

2004

    

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