Numa segunda
vez já vai direto para a bendita Fila. Desta vez, numa agência da Caixa
Econômica no Jardim Botânico. A outra, a fila dos não idosos, nem gestantes,
nem deficientes, era de um comprimento espantoso e movia-se como uma serpente
preguiçosa e obediente seguindo setas desenhadas no chão. Na fila dela, aquela,
a dos idosos, apenas três pessoas. Eis que se defrontam ela e o caixa que a
observa com um ar de dúvida: a senhora
tem 60 anos, mesmo? Responde alto, até irritada e é escutada por um
segmento significativo da fila-serpente. Olhares se voltam para ela, alguns com
franca reprovação, farejando um golpe sujo. Mais tarde irá até se orgulhar com
essa manifestação que tem um quê de elogio, aliado à desconfiança da esperteza.
Mas naquele momento fica furiosa. Afinal a recente descoberta do privilégio
etário lhe concede o sabor de uma conquista. Coisa rara nos tempos de hoje
quando se perde mais do que se ganha. Arranca da bolsa a carteira de identidade
e a entrega ao caixa num gesto grosseiro. O rapaz examina e sorri: não parece! A senhora é muito conservada!
O “conservada” é demais. Esta palavra sempre lhe dá a sensação de estar metida
num enorme vidro, boiando numa calda rala. Enfia pela portinhola o calhamaço de
contas que tem a pagar. Uma voz de mulher, vinda da outra fila, chega a seus
ouvidos: claro que tem mais de 60! Olha
só em redor dos olhos. Outra responde: é
mesmo. O pescoço também! Caramba! Estão falando do meu pescoço! É verdade que, ultimamente, não tem
reparado muito nele. O espelho do banheiro só dá para ver o rosto.
Disfarçadamente passa a mão no pescoço. Assim, no tato, não dá para notar nada
de tão denunciador. Precisa verificar isto. Providência não vai tomar nenhuma,
mas é bom saber. Será uma informação a mais, entre tantas que tem tido de uns
anos para cá, sempre fornecidas por terceiros. A serpente serpenteia e agora uma
voz de homem afirma: o cabelo é pintado,
mas não parece 60, não! Voz feminina irritada, retruca: é porque não é gorda! Gordura acaba com a
gente. Mas tem isto, sim. Ou mais! O caixa devolve o comprovante da
primeira conta. Uma das cabeças da serpente se estica, despudoradamente, por
cima de seu ombro e observa o comprovante. Ela - a cabeça - retira-se rápida e
fala no que pensa ser um sussurro: pelo
que paga de plano de saúde deve ter perto de 70! Incrível! Cabeças da
serpente discutem sua aparência, falando alto, com uma espantosa desfaçatez. Uma
impressionante tendência feminina se estabelece, não só na concordância dos 60
anos, mas também no lhe acrescentar de alguns mais. Os homens variam. Tem mesmo
um que afirma – provavelmente para provocar polêmica: parece ter uns 55! A situação é surrealista. E já que assim o é,
resolve partir para o absurdo. Dá as costas ao caixa que continua
diligentemente destacando canhotos e encara a serpente, como um todo, numa
atitude desafiadora, propondo-se tomar parte ativa na discussão, já que ela e
somente ela, tem o argumento final. Imediatamente o silêncio se faz.
Positivamente não querem ouvir, nem a verdade, nem seu ponto de vista. E ela
nem mesmo tem um! As pessoas começam a tomar posturas diversas e estranhas,
procurando alguma coisa para olhar que não seja ela. Uns examinam atentamente
os sapatos como se os vissem pela primeira vez. Outros o teto. Há os que passam
a ler atentamente todos os cartazes afixados e uns poucos, menos criativos,
fixam o olhar na nuca do que está em frente. Passa a observar cada um,
atentamente, sem dar importância ao mal estar que, visivelmente, está causando.
Já esqueceu a irritação e descobre que há alguma coisa de interessante. Os
jovens não se manifestaram, sabe Deus por que. Esta omissão é intrigante. Será
que 60 anos é uma abstração para eles? Alguma coisa que nunca vai acontecer? É
isto! Não lhes diz respeito. Lembra-se de suas muitas conversas com os filhos e
vem o espanto. Nunca, mas nunca mesmo, lhes falou da velhice. Da velhice deles
que virá um dia. Da velhice de outros até que falou, individualizando, como se
aquilo fosse uma característica exclusiva daquela pessoa sobre a qual
discutiam. Mas do envelhecer inexorável de cada um, nunca. Percebe que só se dá
conta do próprio envelhecimento por espasmos e sempre com surpresa. Já com
todos os comprovantes na mão olha o que está em cima da pilha: puxa, o plano de
saúde é caro mesmo! Sorri gentil para a moça que comentou isso e sai pensando
que uma hidroginástica até que cairia bem. Será que melhora o pescoço?
2004
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