A
noite mal dormida em nada melhora a sensação de desconforto. Por que ficou
vendo aquele filmeco na televisão? Nem mesmo era bom. Maldita NET! Em suas
mãos, o carnê do IPVA é a prova irrefutável do que está por vir: A FILA! A
desconsolada e irremediável fila do BANERJ. Desanimada, arrasta os pés, ombros
caídos, imagem da desolação, na travessia da Praça Antero de Quental. Em
delírio, imagina ser surpreendida, naquele exato momento, pelo som de um
alto-falante derramando a informação sobre a cidade: “PODE-SE PAGAR O IPVA EM
QUALQUER BANCO”. De longe, vê o nome do banco em letras destacadas. Pessoas,
muitas, demandam a porta giratória. Para seu horror, percebe que uma fila
começa a se formar na calçada. E é apenas para entrar! Não adianta apertar o
passo. Ganharia o que? Duas, três colocações? Ao se fazer esta pergunta,
inexplicavelmente, é acometida de um furor competitivo e corre desabalada.
Atravessa a rua driblando os carros, numa manobra suicida. Logo ela que anda
quilômetros em busca de um sinal e assim mesmo desconfia da luz verde. Chega à
calçada arfando. Disputa a colocação com um rapagão louro que, mais preocupado
com o andar sedutoramente gingado, não se apercebe de sua presença. Um
empurrão, que se diria até mesmo violento, lhe garante a colocação dianteira. O
som da voz do rapaz não é agressivo. Ao contrário, é perfeitamente compatível
com o gingado do andar. Percebe até certa doçura e, se não estivesse de costas,
poderia afirmar que um sorriso conduz a palavra “velha” acompanhada de um
“sacana”! Sacana ela até concorda: o empurrão foi mesmo pra valer. Mas velha?!
Velha, não! Velha é aquela senhora que acabou de entalar na porta giratória. A
bolsa prendeu. Fica na dúvida se deve esclarecer o equívoco. A senhora já desentalou
com a ajuda do segurança. Mais um passo e fica matutando, procurando as
palavras e o tom certo para refutar a afirmação. Volta-se para olhar o rapaz.
Bonito, ele. Deve ter lá uns 20 anos. Poderia ser... Um grito mudo se forma
dentro dela: MEU NETO! PODERIA SER MEU NETO! Fica ruminando a descoberta até
que um cutucão a traz de volta. A fila andou e o rapaz, num revide gentil ao
empurrão que dela recebeu, alerta para o perigoso espaço que se abriu entre ela
e o “filante” fronteiro. Avança rápida. Finalmente encontra-se em frente à
porta que agora deu aquela parada abrupta, com alguém dentro. É sua vez.
Entra... e se entala. A enorme bolsa onde carrega testemunhos de sua vida
pregressa prendeu a porta. O segurança, resignado, a liberta. Pelo vidro vê o
sorriso tolerante do rapaz. Lá dentro a fila está embolada no pequeno espaço
disponível. É aqui o fim? É. Resignada, conforma-se em esperar as horas que a
separam do caixa. No fundo, lá no fundo, vê uma pequena fila. Quatro pessoas
apenas. Estica o pescoço para ver se existe algum sinal que justifique o
fenômeno. E lá está, escrito num papelão, em mal desenhadas letras de imprensa:
IDOSOS. A revelação se faz! É espantoso! Como é que a gente se apercebe de uma
coisa tão importante dessas assim, de repente? Sente que é radiante o sorriso
que lhe ilumina o rosto. Vira-se para o rapaz que e comunica: você tem razão! Sou sacana e... velha! Por
isto você fica aqui e eu vou para lá! O rapaz arregala os olhos. Pela
primeira vez, encantada, corre a tomar seu lugar, de direito e de fato, na FILA
DOS IDOSOS. Cinco minutos depois passa pelo rapaz, agitando em baixo do nariz
lá dele, o IPVA quitado. Livre, leve, solta... e velha vai abrindo caminho no
sentido contrário da fila dos não privilegiados. Cruza com a senhora que entalou
na porta antes dela, que lá está, quem sabe, na esperança de que horas de
tormento lhe valham o benefício de ser confundida com a mocidade dos que,
obrigatoriamente, têm que se submeter àquela tortura. E lá vai ela, ainda
sorrindo pela praça, demandando o sol, o ar, a vida.
2004
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