Dessa
vez não é de idosos a fila, embora alguns se façam presentes, misturados
democraticamente aos não. É a fila do PTA. Para os que não sabem: PTA é uma
invenção internacional de respeito! Uma pessoa ou organização envia para você
uma passagem aérea. Essa pessoa (ou organização) avisa que fez isto e fornece
uma sucessão de letras e números, absolutamente ilógica: o número do PTA.
É isso mesmo! O número é formado de letras! Não perguntem por que. É
internacional! É assim e pronto. A pessoa (ou organização) fornece também o dia
e o número do voo (esse é número mesmo). Pois bem: munido ou munida dessas
informações, você se dirige ao aeroporto, duas horas antes do voo como se
impõe para os que ainda não estão de posse da passagem e coloca-se numa fila -
a fila do PTA - para retirar a dita passagem. A fila, como todas as filas que se prezam,
é grande e apresenta, ao contrário das mais comuns, uma homogeneidade de
personalidades: são quase na totalidade executivos e executivas. É preciso que
se explique que a fila do PTA é única para todos os vôos possíveis. A
inconfundível voz da Iris Lettieri, de tempos em tempos, anuncia chegadas e
partidas, única distração possível naquela circunstância. À medida que se
aproxima a hora do voo de alguns que estão na fila, uma movimentação estranha
ocorre. Funcionários da empresa percorrem a fila em sentido contrário perguntando
qual o número do voo de cada um dos filantes e passam a reorganizar a fila dando prioridade aos de horários mais próximos. Por que não fazem isto desde o início é um mistério.
Mais uma vez, não me perguntem. Vai dai que depois de uma tumultuada migração
ficam agrupados todos que demandam o mesmo destino, a esta altura, informados de que são iguais na demanda. Isto faz com que passem alguns a
conversar, até um tanto íntimos. Tudo isto acontecia com ela naquela quase
madrugada. Mas eis que chega ao balcão. O simpático rapaz pergunta o “número”
do PTA. Neste momento sente-se humilhada. Ao contrário dos funcionários das
companhias aéreas que são capazes de associar de maneira instantânea, letras às
palavras que por elas começam, ela não é! O “número” de seu PTA é ZXJVKW. Uma
agonia. O início é fácil e, orgulhosa, começa: Z de Zebra. Y de... de...
(droga! não tem Y em português!). Bolas, deixa pra lá. É ipsiIone, pronto.
Depois é X. Meu Deus! Xarope é com X? Tem todo o jeitão de ser... Um tanto
insegura informa: X de... (mais baixinho) xarope? O funcionário sorri
aprovando. É com X! Sorri também, aliviada: a próxima é J. Encantada, perde-se
em palavras: jabuti, jamanta, jamelão, jaca, jararaca, jacutinga. O funcionário
não tem o menor senso de humor. Severo, repete: Zebra, Xarope, Jabuti... e
depois? Retruca com altivez: V de VARIG! (o enunciado do nome de outra empresa
é uma sutil bofetada). Respira fundo e lança numa provocação: K de kantismo.
Bem feito. Aposto que ele não sabe o que é. Imperturbável o rapaz espera a
última. Bolas! É W de Walter quando Walter é com W e não com V. Agora, já na
fila para embarque, pacientemente espera, com olhadelas furtivas para o
relógio. Olha para trás para observar os companheiros de viagem. Seus olhos
batem nos olhos da moça, logo atrás, executivamente sorridente: vai visitar os netinhos? É comigo? Devo
estar sendo confundida com alguém. Não tenho netinhos. Tenho netas e não são
“inhas”. O olhar e o sorriso são insistentes e a moça repete, desta vez num
ritmo mais lento, mais alto, destacando sílabas para que sua
provável surdez escute: vai vi-si-tar os
ne-ti-nhos? Irritada, responde: não.
Vou a trabalho. O olhar da outra é de assombro. Significa claramente o que
pensa: coitada! Quer se igualar aos outros... é natural... como é triste a
velhice... não deviam deixar uma pessoa dessas viajar sozinha... Polida, paciente e até carinhosa, a moça
prepara-se para ouvir a fabulação: o que é que custa, Meu Deus? Ela vai ficar
tão feliz se eu fingir que acredito. Verbaliza a intenção: e que trabalho a senhora faz? Agora encrencou! Como é que vai poder
dizer a esta gentil mocinha que é analista de sistemas? Vai soar como agressão.
Pensa rápido. Um trabalho condizente a cabeça branca e com a silhueta já não
tão esguia... Uma atividade que torne verossímil a afirmação de que vai a
trabalho. Tem que haver um para sossego de ambas. Afinal são quase seis e
meia da manhã e ambas acordaram às quatro e meia e ninguém tem o direito de
perturbar a cabeça de alguém que passou por este tormento. Tem que haver. Tem
que haver. Agarra-se ao embrulho de presente que tem nas mãos, destinado a uma
amiga que adora cozinhar: A Mesa com Monet. A resposta sai quase num grito: Dou aula de bolos artísticos. Uma
expressão de alívio ilumina a fisionomia da moça. E lá vem o tapinha, carinhoso
e íntimo, próprio para ser aplicado aos idosos. A frase soa entusiasmada: Bolos artísticos! Que interessante!
2004
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