Olha! Presta atenção! Uma nota blue! Ela
fala sorrindo para o Homem. Ele não responde. Nunca responde. Mas sorri. Mas
ela, como sempre, percebe que ele escutou. A poltrona onde ela o vê havia sido comprada
depois, muito depois que ele se foi. Mas, tem certeza: ele havia gostar sentar-se
nela, ao lado do som, ouvindo atento a harmonia requintada de Joe Pass. Ele e
os outros. Quer dizer, alguns não escolheriam aquela. Iriam preferir o
sofá ou, quem sabe até, iriam sentar-se em uma das cadeiras da mesa de jantar,
espalhando jornais. Ou, ainda, disputariam com ela a espreguiçadeira. O Pai,
com certeza faria isto. Iria usar da prerrogativa de mais velho. Logo ele. Tão
moço. Muito mais moço que ela é agora. São tantos os que se foram. Foi triste, tão
triste, quando aconteceu. Depois, foram voltando aos poucos, Assim, sem aviso.
E as conversas continuaram do ponto em que haviam parado. E, mais que isso –
ela percebia lá no dentro dela, que se interessavam pelo que
contava. Vai daí que contava. Nem tudo, pra todos. Para alguns o que tinha para
contar nem ia interessar. Então selecionava. Mas às vezes era uma festa porque
o acontecimento era tão importante que todos apareciam, distribuindo-se
pela sala, atentos ao relato que ela, emocionada, fazia. Foi assim quando nasceu
a segunda neta. Contou tudo: desde a hora em que chegou esbaforida, vinda de
uma reunião de trabalho, até o momento em a pegou nos braços. Vocês não podem nem imaginar! É linda! Quer
dizer é feia como todos os recém-nascidos. Mas é linda! E eu, gente! Sou avó
duas vezes. Pergunta curiosa para a
Avó: O que foi que você sentiu quando eu
nasci? Claro que ela não respondeu. Nem precisava. Perguntou só por
perguntar por que muitas e muitas vezes a Avó contara. O sorriso do Pai é de
orgulho. Pudera! Ele sim! Bisavô duas vezes! Naquele dia o Homem
ainda não estava. Quer dizer, estava, sim. Ao lado dela. Havia presenciado tudo,
junto a ela. Depois, muito depois, quando passou a aparecer como os outros, num sorriso mudo perguntou e ela informou: está
com 30 anos! Uma bela moça. É médica. Viu admiração nos olhos dele e ficou
orgulhosa da neta. Uma vez ele ficou zangado. Muito zangado. E ela percebeu por
que. Sentiu que ele falaria: você
desmanchou o meu estúdio. É verdade. Ela havia feito isto. Agora é um quarto de hóspedes, ela respondeu à expressão que viu nos olhos dele, aprendi com
você a dar um fim no que teve fim. Não
tinha mais sentido. E eu nunca iria tocar como você. Pra que gravar? Ele se
rende e a expressão agora significa: gostaria
de dizer o contrário. Mas você nunca vai tocar bem. É verdade ela pensa. Eu
nunca fui lá muito boa no violão. Este pensamento o Filho percebe e intervém, mudamente: você teria tocado bem se não fosse tão
preguiçosa. Afinal aprendi meus primeiros acordes com você. Curiosa ela
pergunta: vocês, por aí, tocam juntos?
O Homem e o Filho olham para ela espantados e ela se dá conta: eles não se
conheceram. Que coisa! O Pai também tocava violão. Como ela. Assim,
descuidadamente. Mas ele não faz qualquer comentário. Está olhando com
estranheza para o micro. Ela sorri: como ele ficaria encantado em ter um.
Quando se foi, ainda usava régua de cálculo. Até para calcular logaritmo! Não se usa mais isto, não, Pai. A sua, a
régua, onde anda? Era linda. Sumiu como tantas outras coisas. Pai, você levou quando
foi? O Pai apenas sorri. Mas ela desconfia que sim. Ele não largava aquela
régua. Volta-se para o Tio. Ele está de botas de montaria. Hermès. São
botas Hermès! Lindo como sempre foi, encarrapitado no braço do sofá, ao lado da irmã, Mãe dela. Eles nem parecem
perceber a Avó, que ao lado, lê Proust e que de longe, de muito longe, fala: há que se ter vivido para ler Proust. De
hoje ela responde: sabe, vó, eu hoje leio
Proust. Estou mais velha do que você, não é incrível?
O telefone toca. É um amigo: vem pra cá. O que é que você está fazendo nesta casa vazia? Ela sorri. Vazia?! Ele não sabe de nada!
O telefone toca. É um amigo: vem pra cá. O que é que você está fazendo nesta casa vazia? Ela sorri. Vazia?! Ele não sabe de nada!
2005
Anna maria,
ResponderExcluirMuito interessante, como a autora retrata uma casa que teve muita vida, mesmo na ausencia dos seus mradores, nunca ficara vazia.
Um grande abraco.
Ari.
Jose Arimateia Da Silva
É muito belo este texto também; perdi meu avô tem vinte dias e, é estranho ir a casa de minha mãe, onde ele morava, e no caminho, sentir que está indo pra casa em que ele não está. Mas, quando se chega na casa em tudo ele está; na poltrona, sentado à mesa, na cadeira da varanda. Ele só não está presente na hora que me tenho que voltar; suas mãos já não tocam as minhas mas, no peito, ele está; e vive forte. 99 anos de lucidêz, um orgulho que não se apaga do peito; nas lembranças...
ResponderExcluirEste texto me faz pensar nos contos do Júlio Cortazar; Adorável!
Alexandre Pedro
Alexandre, se aprendi alguma coisa nestes 83 anos é que as pessoas que sempre estiveram continuam a "estar". De uma outra forma, mais silenciosa e, como você diz muito bem, intocáveis. Comecei a escrever estas crônicas para que minhas netas e minha bisneta me tenham presentes quando não mais.
ResponderExcluirJulio Cortazar!!!
Aceito pelo exagero da mocidade que você deve ter. Devo devo muito aos moços que me ajudam a me manter atual, como parece ter sido seu avô pela lucidez de que você fala. Velhos lúcidos são velhos que, se sabendo velhos (e gostando disso), aprendem a ser atuais.
Abraços
Anna Maria