quinta-feira, março 06, 2014

E SE...

      Frente à tela fazia tempo que Mafalda olhava mas não via e nem escutava a novela. Engraçado! A partir dos sessenta e cinco anos este alheamento havia começado. A filha que passava de lá pra cá em seus afazeres comentava com as amigas: Mamãe não perde um capítulo. Fica vidrada.  Prestasse ela mais atenção à expressão de Mafalda, perceberia que aquele olhar vago e distante não era destinado aos personagens que desfilavam na tela. Mafalda estava era se dando conta da entrada na terceira idade! E como!

      Em sua vida até então nada de terrível havia ocorrido. Fora tranqüila entremeada de momentos bons e ruins como a de todo mundo. Alguns foram difíceis e tristes, é verdade, como a morte do marido havia alguns anos.  Mas isto teria mesmo que acontecer: era ele quase vinte anos mais velho. Os filhos – três - haviam nascido, crescido e tomado o destino lá deles sem maiores problemas. Uma pensão razoável garantia-lhe o morar com a filha sem a sensação de dependência. Ao contrário, até ajudava, providenciando coisas supérfluas que o genro não poderia prover. Então – pensava Mafalda – porque a sensação de que alguma coisa faltara? Por que esta sensação estava ali, presente. Incomodando. E o que é pior, cada vez mais forte. 

      Vai daí que um dia a neta interrompe seus devaneios com uma pergunta aparentemente sem importância: Vó, e se você ganhasse na sena?  Mafalda sorri, achando graça: impossível, meu bem. Eu não jogo!  A neta insistiu: mas, e se?!  Mafalda não respondeu, mas, a partir deste dia, não conseguiu mais se livrar da introspecção do que lhe faltava. Aquilo ficou martelando e seus ouvidos: “e se... e se...”  Censurou-se: e se o quê? Jogar na Sena?  Que bobagem! A probabilidade é mínima. Esta constatação deveria ter sossegado seu pensamento. Mas não! O “e se” continuava insistente. Lembrou-se sorrindo e até um pouco envergonhada: e se eu houvesse me casado com  o Augusto? Uma pontinha de emoção começou a fazer seu coração bater mais forte. Censurou-se de novo: que coisa ridícula na minha idade! Ele já deve até ter morrido. Suspira: era lindo! E se não houvessem mudado para o Rio de Janeiro... quem sabe?

      A partir daí uma torrente de “e se” começou a jorrar de seus pensamentos. E se não houvesse aceitado a imposição do marido para que parasse de trabalhar? E se tivesse ido à Europa com o dinheiro que teria ganhado? E se tivesse conhecido Veneza, seu sonho? E se tivesse dito à desagradável Tia Eulália tudo que ela merecia ouvir? Uma tristeza começou a invadir seu mundinho: os “e se” ficaram todos num passado distante. Impossível de realizá-los. Até a peste da Tia Eulália já se foi!

      De repente como um raio um pensamento perigoso. Muito perigoso!. Os “e se“ não precisam se tornar passado!! E se ela comprasse aquele vestido que adorou, mas achou com um ar muito jovem? Levantou-se de um salto. O shopping ficava aberto até 10 horas e era é logo ali. Sob olhar estarrecido da filha anunciou: vou sair. Já volto!  E foi assim que tudo começou. O vestido novo funcionou como uma armadura guerreira que lhe permitiu partir, lança em riste, para a aventura de uma terceira idade assumida e divertida em que os “e se” podem acontecer no presente.

      O primeiro dos desatinos (segundo os filhos) foi: e se eu fosse dançar na Estudantina? A ida ao dancing sozinha era uma ação inimaginável em sua pacata vida. Mas foi. Não só foi como dançou, noite adentro, com um daqueles fabulosos senhores que por lá exibiam suas qualidades coreográficas. E se eu cortasse meus cabelos bem curto, deixando que os cachos que sempre procurei esconder se liberem? E assim foi feito e no salão o “e se” funcionou a mil: maquilagem, depilação, massagem linfática tudo o que tinha direito. Quase não foi reconhecida ao entrar em casa.


      Os filhos ficaram em pânico. Uma noite se reuniram em casa do mais velho deles aventando as possibilidades as mais terríveis. O que mais ela poderia aprontar? A filha desolada  informa: ela comprou um maiô! Deu pra ir a praia com aquele velho do quinto andar! Os outros gritam apavorados: vai dizer que ela está namorando?! A moça suspira: felizmente, não. Ela disse que ele é um chato... mas carrega a barraca!  Ao voltar para casa a filha quase desmaia ao vê-la  participando da mesa de pôquer que o marido organiza as quartas feiras com os amigos. Ela chama o marido aparte e furiosa cobra: “ta maluco?! Você está dando força para esta loucura de mamãe querer parecer jovem?!”  O genro sorri: “ela não está parecendo mais jovem e nem quer isto. Ela está, minha querida, muito  feliz!”   

quarta-feira, março 05, 2014

O SEGREDO


Podia-se dizer, sem mentir, que Quinzinho era um homem de sorte. Desde o nascimento tudo havia dado certo e foi assim, que aos trinta anos, a vida lhe sorria no rosto de Dalva, sua mulher. Dalva havia sido, e ainda era, a mulher mais bonita que já vira. Estavam casados havia dez anos e eram citados por todos como o casal mais feliz daquelas paragens. De fato era invejável o entendimento entre os dois. Amavam-se perdidamente. Não havia entre eles palavras não ditas, pensamentos não revelados, anseios não expressos. Confiavam tudo um ao outro, certos do entendimento, da aceitação, da compreensão. Por esta razão Quinzinho não se recriminava de haver guardado um único segredo: era estéril.

Havia sabido disto quando se candidatou ao tiro de guerra na cidade onde estudava, longe de todos. Na época aquilo incomodou um pouco e ele guardou para si a informação. O incômodo logo passou quando Dalva, no início do namoro, lhe fez uma extraordinária confissão: achava difícil que um homem a quisesse como esposa já que ela abominava a ideia de ter filhos. Quinzinho, já caído de amores, exultou. E, sabe-se lá por que não revelou sua impossibilidade neste setor. Apenas concordou, entusiasmado: filhos jamais!  E vai daí que esqueceu a esterilidade. Esqueceu mesmo.

E eis que chega de Portugal um primo distante para uma visita. Hospedou-se em casa dos pais de Dalva e, imediatamente, ficou íntimo do casal que se maravilhava com histórias e descrições de uma Europa que lhes parecia um lugar encantado. Havia vindo para passar dois meses, mas de repente, para espanto geral resolveu partir. E todos culparam Dalva deste fato por que ela, inexplicavelmente, havia se tomado, do dia para noite, de uma solene antipatia pelo Primo tratando-o com indiferença e até com certa grosseria. Recriminada por todos Dalva reagiu mal, pela primeira vez, até com Quinzinho. Mas ele colocou um ponto final no assunto.  

Pouco tempo depois o ponto final transformou-se num raio quando Dalva, aos prantos, revelou que estava grávida. Estava esclarecida a rejeição de Dalva ao Primo. Quinzinho, ao invés de bradar aos céus, como seria de esperar, emudeceu. E suas lágrimas juntaram-se às de Dalva. O médico espantou-se: mulher com depressão pré parto já não era comum, homem então!  Pela primeira vez não tinham eles a mesma clareza sobre os fatos: o motivo do pranto de Dalva era conhecido por Quinzinho. E ela, que nem desconfiava disto, atribuía a um filho não desejado a torrente de lágrimas do marido. E ele sofria. Sofria muito. Isto durou até que foram a um show de Roberto Carlos. Como última música ele cantou, emocionado, “Eu vi a mulher preparando outra pessoa”... e o tempo parou para que Quinzinho olhasse para aquela barriga como fruto seu.

E foi assim que Joaquinzinho nasceu lindo e bem vindo para alegria da família e espantosamente de Dalva e Quinzinho.  Mas desmentindo ditado, um raio cai, sim, duas vezes no mesmo lugar. Num terrível diagnóstico Joaquinzinho adoece e a única salvação seria um transplante de fígado. Dalva havia tido hepatite e não poderia ser a doadora. Ela e Quinzinho, ambos sabedores da verdade, se desesperam. Quinzinho submete-se aos exames para verificar a compatibilidade. Mudos, eles esperam pelo milagre de uma coincidência impossível. E eis que o médico, olhando o resultado do exame, anuncia ao aterrado casal: não nega que é seu filho. E Joaquinzinho é operado com o maior sucesso. Pasmo Quinzinho procura uma clinica e em segredo se faz examinar. Aleluia! O exame feito por época do tiro de guerra não se confirma.  No hospital ainda, para distrair o filho, Quinzinho mostra um álbum de família identificando os retratados.


E eis que o dedinho do menino aponta o Primo, numa das fotos: quem é esse? Dalva retém a respiração e observa o marido. Uma retumbante gargalhada ecoa no quarto. Quinzinho ri. Ri e chora. Ele toma Dalva nos braços e rodopia com ela, dançando leve e solto. E ele grita, brada aos céus: Dalva, meu amor, você tinha razão, o Primo era um cretino. E voltando-se para o filho: este ai, meu filho, não era ninguém! Sem que fosse preciso explicar e porque se amavam muito, Dalva entendeu tudo. E foi assim que o único segredo que havia entre eles desapareceu para todo sempre no riso alegre de Joaquinzinho.  

terça-feira, março 04, 2014

A REFORMA DESEJADA


       Marco Aurélio era, aos 30 anos, um esquisitão. Em tudo, cópia do tio avô Ramiro, que lhe havia legado o Casarão. Por isto ninguém se surpreendeu quando ele decidiu nele morar. Até que tentaram convencê-lo a vender. Escandalizou-se o rapaz: vender a casa do Tio Ramiro?! Nunca! Pelo menos faça uma reforma, pediram. Escandalizou-se mais ainda.

E foi assim que Marco Aurélio refugiou-se em meio às paredes cinza e tristes em companhia de uma senhora discreta e muda como o patrão e que se ocupava de todo serviço. Fora os livros e os velhos discos, também legados pelo Tio, nada mais lhe interessava. Nem mesmo as belas pretendentes que acabavam por desistir. Nisto também imitava o Tio Ramiro. Este jamais se interessou pela bela Joana que, morrendo de paixão, retardou o casamento até o último minuto esperando que Ramiro desse apenas um sinal para abandonar o noivo e jogar-se em seus braços. Contava a lenda familiar que no dia do casamento de Joana, Ramiro resolveu galopar estrada a fora em seu belo o cavalo alazão que jamais saia das cocheiras. Quem sabe irritado por ser perturbado em seu eterno descanso o cavalo reagiu e atirou Ramiro ao chão. Acordou dias depois num hospital mais enfarruscado do que nunca.


Além dos livros e os discos só demonstrava interesse por Marco Aurélio que, desde o nascimento, mereceu deste tio atenções nunca vistas, no que era correspondido pelo menino que o adorava. Quando Marco Aurélio veio morar no casarão manteve tudo exatamente como o Tio havia deixado. Única diferença foi a cocheira agora usada como garagem onde o belo carro em nada ficava a dever ao alazão do Tio, mas que nunca era usado.

Um belo dia a governanta sai de seu mutismo para fazer um pedido: uma sua sobrinha ficara órfã e só no mundo. Não tinha para onde ir. Será que poderia vir morar no casarão ocupando o pequeno depósito onde coisas que caiam em desuso eram guardadas? Ela poderia ajudar no serviço. Marco Aurélio concedeu, mas exigiu: desde que não me dirija palavra. E assim foi feito.

Como a apaixonada do Tio Ramiro, a moça chamava-se Joana e como ela era também deslumbrante. Passou a ser uma presença silenciosa junto a Marco Aurélio. Era ela que lhe servia o café, o almoço e o jantar, Os pratos, trazidos numa bandeja enfeitada com uma rosa sempre fresca, se sucediam acompanhados de um leve perfume de lavanda. Coisa estranha: Joana parecia adivinhar quando sua presença era necessária. Surgia do nada, sem ruído, trazendo a xícara de chocolate quente, fechando as cortinas quando a claridade incomodava, preparando a cama no momento em que o sono vinha e escolhendo as roupas que ele desejava vestir, após o banho, que arrumava primorosamente sobre a poltrona do quarto.

Joana havia se incorporado ao casarão e ao patrão. Dois anos se passaram até o dia em que Marco Aurélio ouve pela primeira vez a voz de Joana: é a última vez que lhe sirvo. Eu amo o senhor e isto não pode, não é? Marco Aurélio sentiu uma coisa esquisita quando o jantar foi servido pela governanta que, sem dizer palavra, assumiu todas as tarefas de Joana. Dela ficou no ar o perfume de lavanda que foi sumindo, sumindo até desaparecer por completo. E a coisa esquisita que ele sentia foi aumentando, aumentando e se tornando uma quase dor quando passava pela porta do quartinho que havia sido de Joana.


Alguma coisa tinha que ser feita. Atribuindo o desconforto e o mal estar a aquele quarto que permanecia como Joana havia deixado, decidiu por um recurso extremo: uma reforma! O quarto se tornaria uma despensa apagando a lembrança. É isto! E sem esperar ajuda começou a retirar do quarto todos os objetos que ainda guardavam o perfume de Joana. Ao retirar uma pequena caixa de madeira, curioso, abriu. Nela um embrulho com os dizeres: pertences recolhidos no acidente do doente Ramiro Gomes Teixeira. Entre estes uma carta na qual Tio Ramiro se declarara minutos antes de partir em seu alazão para raptar sua Joana às portas da igreja: meu amor, juntos leremos esta carta onde escrevo o que nunca fui capaz de dizer. E a governanta se assusta quando vê Marco Aurélio passar em disparada em direção à garagem, gritando: preciso entregar a carta! O carro espatifa-se contra um caminhão ao cruzar a estrada. No cemitério, pela carta que nunca recebeu, lagrimas correm pelo rosto bonito de Joana. 

segunda-feira, março 03, 2014

O TEATRO DA VIDA

      Hoje, passados tantos anos, nenhum deles consegue lembrar como e porque o Teatro havia surgido. Aquela vila de subúrbio era o palco e os pais o público que entusiasmado aplaudia os espetáculos produzidos pelas crianças, ainda tão pequenas. As idades variavam entre sete e onze anos. Pedro, o mais velho, era o diretor da Companhia. A estrela, Marinha. Aos dez anos a menina já anunciava a beleza que despontaria anos mais tarde. As peças improvisadas, jamais escritas ou decoradas, tinham por inspiração histórias narradas às crianças pela avó de Pedro. O figurino dos personagens era tomado emprestado nos guarda roupas dos pais; adornos e jóias confeccionados em papel crepom.

      E foi assim, como todos os outros, montado o último espetáculo: Rapunzel. Nesta montagem uma surpresa: Pedro exigiu para si, além da direção, o papel do Príncipe. Houve revolta. Afinal o galã era sempre o Tonho. A discussão terminou quando Pedro ameaçou deixar a Companhia: capitularam sem entender o porquê da insistência. Mas nem mesmo Pedro entendia o mal estar que sentia quando imaginava que outro, que não ele, iria tocar os cabelos de Marinha. Ele tinha fascinação pelos cabelos da menina: negros, brilhantes, fartos, chegando até a cintura. Até sonhava com eles! E se enfureceu quando Fabinho, que fazia o papel do Pai de Rapunzel, comentou que os cabelos da Princesa deviam ser louros e que só uma menina loura poderia fazer o papel. Pedro, indignado, invocou a presença da avó para atestar que Rapunzel era morena. Esta percebendo que por alguma razão isto era importante para o neto adorado, afirmou: os cabelos de Rapunzel eram negros! Muito negros! Diante deste abalizado testemunho todos se calaram e Marinha foi confirmada como Rapunzel.

      O espetáculo foi lindo. Emocionada, a platéia tomada por fértil imaginação, via uma altíssima torre no lugar da escada de quatro degraus da cozinha da casa de Tonho, onde Marinha-Rapunzel, num equilíbrio instável e interpretação irrepreensível, escutava o chamado de Pedro-Príncipe: Rapunzel, solta seus cabelos!  Num gesto dramático, Marinha os lançava escada abaixo para que Pedro os pudesse utilizar como corda para juntar-se à amada. Terminado o espetáculo a platéia aplaudiu frenética enquanto os atores de mãos dadas se curvavam agradecendo.

      Quando foi servido o lanche de costume (cachorro quente e coca-cola) a terrível notícia caiu como um raio.  A família de Rapunzel, quer dizer de Marinha, iria mudar-se para São Paulo!  Aquele seria seu último espetáculo como estrela da Companhia. E Pedro sentiu o coração apertar. Nunca mais iria ver aqueles cabelos lindos, que agora havia tocado. Eram macios, tão macios!
* * *
      Pedro, aos vinte e cinco anos, sorri no pensamento: ainda sinto o coração apertado. Como estará Marinha hoje em dia? Com certeza cortou os cabelos. E vem uma idéia maluca: ela poderia ter sido a mulher de minha vida. Mas naquele tempo eu não percebia. Era tão criança...  
* * *
      A amiga de Marinha espanta-se: que ideia! Deixar de ir ao almoço da turma para ver um desenho animado! Pirou? Marinha sorri: não é um desenho animado. É a história de Rapunzel! A amiga espanta-se: e daí? Espanta-se mais ainda com a resposta de Marinha: o Príncipe, poderia ter sido o homem de minha vida! .  
* * *
      A fila do cinema está enorme. Crianças acompanhadas pelos pais fazem uma enorme algazarra. Pedro sente-se deslocado: o que é que eu estou fazendo aqui?  Marinha, um pouco adiante na fila, sonha: será que o Príncipe se parece com Pedro? Sem saber por que o faz, retira a presilha que prende os longos cabelos que nunca teve coragem de cortar. Eles caem sobre seus ombros chegando à cintura. Ouve-se um grito: Rapunzel! Ela se volta e deslumbrada reconhece Pedro que corre em sua direção. Os que estão na fila, espantados, observam o casal que se abraça comovido e depois parte, mão na mão, em direção à vida.


domingo, março 02, 2014

AMNÉSIA

Coisa mais absurda o nome que lhe deram: Bela! Porque Bela era feia. Muito feia. Ninguém sabia, nem ela mesma, de quem havia herdado a boca torta, os olhos arregalados e aquele nariz enorme. Bela fora deixada na porta de um asilo com dias de nascida. Mas se a herança havia sido cruel, no que tocava ao físico, uma enorme compensação se dava em todo resto. Bela era extremamente inteligente, sensível e corajosa. Mas nem isto ajudou para que alguma família a quisesse adotar. Tão feia ninguém a queria. Devorou ávida de saber, os poucos livros que havia no asilo e, lido o último, resolveu fugir. Pra onde nem sabia. Mas pelo que havia lido pressentia que lá fora outro mundo havia, onde pessoas viviam aventuras emocionantes.

Não foram fáceis os primeiros dias. Passou fome! Até que aportou naquela casa, tão bonita, onde além do prato de comida lhe deram trabalho. Ajudante da cozinheira não tinha que aparecer; como arrumadeira só se fazia presente nos belos salões quando a família ainda dormia. E foi assim que entre as cortinas viu Marcelo pela primeira vez. E Bela caiu-se de amores. Amor impossível, bem sabia. Mesmo assim dava um sentido a sua vidinha tão sem esperança. Bela quase não dormia. A patroa havia permitido que tomasse emprestados os livros da enorme biblioteca da casa. Livros que devorava à noite em seu quartinho. E foi assim que Bela se tornou uma pessoa que sabia das coisas. Tivesse oportunidade não faria vergonha em qualquer lugar. Mas esta oportunidade nunca iria existir, pensava ela, que se contentava em vigiar cada movimento de Marcelo.

Aproveitava as idas à feira para obter informações sobre ele. Soube que era órfão e muito rico. Morava sozinho naquela mansão. Chegou a rir quando lhe disseram que era formado em medicina e fazia residência em cirurgia plástica. Parece piada, pensou: eu tão feia e ele fabricante de beleza!  Através das grades do jardim, às escondidas, acariciava o cãozinho Peteleco que ele adorava e com o qual às vezes o via brincar. Tocá-lo era como tocar em Marcelo e isto a emocionava. Bela não se enganava nem se envolvia num sonho como se verdadeiro pudesse vir a ser. Sabia que o impossível era impossível e contentava-se em amar à distância e que ainda que esta distância fosse apenas o outro lado da rua, seria para sempre intransponível. 

Mas a vida é mesmo imprevisível. Os patrões resolvem mudar para São Paulo e, feita a mudança, a deixam tomando conta da casa até que o comprador dela tomasse posse. Ela iria para São Paulo tão logo isto ocorresse. E, nesta folga inesperada, Bela resolve ir passear na Lagoa. Foi assim que a bala perdida da perseguição policial lhe destruiu o rosto. Ao acordar no Pronto Socorro, depois de operada, vê vários médicos ao lado da cama. Marcelo é um deles! Ele está sorrindo ao escutar o que lhe diz um colega: desta vez você se superou! Incrível o que conseguiu fazer. Marcelo curva-se sobre ela: como é seu nome? Hesitante ela responde: não sei!

Condoídos todos se dão conta que ela não sabe quem é, não sabe de onde vem, não sabe nada. A memória se foi, levada pela bala. Sem documentos, na bolsa apenas o dinheiro da passagem, ninguém procura por ela. Marcelo envaidecido de seu trabalho dá a Bela uma atenção muito maior do que a necessária. Outras operações seriam necessárias para arrematar a obra. Aos poucos Marcelo se encanta com o mistério da origem, a inteligência, a cultura. Passam horas conversando. E, como nos contos de fada, o amor que, fazia tempo, havia desabrochado em Bela, encontra o caminho para o coração de Marcelo.


E vem o dia em que Bela, ao retirar definitivamente as ataduras que lhe envolviam o rosto, se vê maravilhada, verdadeiramente Bela. Irreconhecível. Nada impede agora um futuro para aquela que não tem passado. No dia em que tem alta, pelos braços de Marcelo, é conduzida à mansão que vigiava através das cortinas. Peteleco corre para saudá-los e ela grita: Peteleco! Marcelo assombrado pergunta: Como é que você sabe o nome dele?  Por alguns segundos o coração de Bela dá uma cambalhota. Mas ela se recompõe, sorri: você me falou dele! Não se lembra, meu bem?! Marcelo ri: não! Vai ver amnésia pega! E ela: pois eu me lembro. E é minha única lembrança. Mas daqui pra frente terei muitas.          

sábado, março 01, 2014

É O DESTINO

A moça se tornara uma obsessão. Aos amigos parecia uma maluquice. Apaixonar-se por alguém havia visto durante apenas alguns minutos! Naquela fila de espera, no aeroporto, haviam trocado poucas palavras. Mas o sorriso, a voz, os olhos brejeiros, o deixaram louco. Marquito pediu, implorou mesmo, o endereço, o telefone, qualquer informação que pudesse garantir um novo encontro quando então ele a pediria em casamento, com certeza. E ela, rindo, respondeu: quem sabe um dia vamos nos encontrar de novo... por acaso... Acredito no destino, sabe?  Aí então... E sem alternativa, ele passou a acreditar também.

Um nome... apenas um nome – Violeta. Naquele tempo ainda era jovem, muito jovem e agora já não era tanto. Durante anos Marquito esgotou todos os recursos na busca de Violeta. Os pais se foram desta vida, preocupados com ele.  Em conchavo com os amigos haviam tentado encontrar alguém que substituísse a amada idealizada. Impossível! Ele nem mesmo olhava as moças que lhe eram apresentadas. Estas bem que se encantavam pela beleza e pela posição invejável de que ele desfrutava. À medida que os anos passavam Marquito foi se tornando um homem triste. Em desespero, nas noites mal dormidas, a imaginava casada, feliz, com filhos que não dele. E sofria. Sofria pra valer. A voz, o sorriso e os olhos brejeiros o acompanhavam onde quer que fosse.


Desistiu do carro. Lembrava-se do destino de que ela falara. Seria mais fácil encontrá-la, no por acaso, em meio aos passantes. Em sua loucura, às vezes, parecia vê-la entre a multidão. E ele corria a seu encontro. Mas nunca era ela. Guardava em sua memória cada traço de seu rosto. Lindo, tão lindo. Rindo, sempre rindo. Um dia pensou: rindo de mim! E ficou ainda mais triste.

Em sua loucura contratou um pintor capaz de reproduzir um retrato falado. Passou meses a seu lado em requintando na busca dos mínimos detalhes, das mais sutis nuances de cores. Até que na tela surgiu, em todo seu esplendor, a amada. E ele pediu ao pintor que a reproduzisse em muitas telas que passaram a povoar as paredes de seu belo apartamento para espanto de todos que nele entravam. Os amigos (e ele os tinha muitos) não mais falavam em terapias, viagens e possíveis substitutas. Resolveram embarcar na loucura. Referiam-se à Violeta como se a conhecessem e como se, a qualquer momento, fosse entrar pela porta. Não mais se afligiam quando em meio a uma conversa, ele emudecia, olhando para um dos muitos retratos de Violeta, refugiando-se num mundo mágico onde só a moça era admitida. Quando isto acontecia, eles saiam de mansinho, sem se despedir, deixando-o só. Sabiam que esta contemplação poderia durar horas.

Um dia lhe falaram de uma cartomante capaz dos mais extraordinários feitos. E a esperança renasceu.  E não sem razão! Maravilhado Marquito a escutou afirmar que iria encontrar Violeta, num acaso, como ela havia previsto. E mais: ela não estava casada! Nunca esteve! As cartas diziam que ela o havia esperado, também. E o encontro estava próximo. Era preciso ficar atento, muito atento, sem qualquer distração, porque iam literalmente se esbarrar na rua. Ao andar pelas calçadas, em busca incessante, deveria esquecer-se de qualquer imagem que não fosse a de Violeta. E ele não parou mais de andar.

Um dia acordou com a sensação de “É Hoje”! Radiante esmerou-se no vestir e no barbear-se e saiu. Ao sair de casa parecia que alguma coisa guiava seus passos. Ia decidido como se soubesse para onde. Ao aproximar-se de uma esquina seu coração bateu mais forte. Ali vou atravessar e ela vai estar do outro lado! Tinha certeza. Já próximo da esquina pára, olhando-se num espelho disposto em uma vitrine. Confere a imagem: será que ela vai me reconhecer? Sorri para si mesmo fazendo render a emoção de que estava preso. Neste exato momento, Violeta dobra a esquina. Prepara-se para atravessar a rua quando esbarra num homem deixando cair embrulhos que trazia. Curvam-se os dois para apanhá-los, rindo e desculpando-se ao mesmo tempo.


O homem está visivelmente encantado com a voz, o sorriso e os olhos brejeiros. Os dois se dão conta de que o sinal já está piscando e, correndo juntos e ainda rindo, atravessam a rua. Neste exato momento Marquito deixa o espelho e se dirige para esquina aguardando, emocionado e esperançoso, a abertura do sinal. Já longe Violeta responde ao homem que lhe faz uma pergunta: é o destino, quem sabe?   

sexta-feira, fevereiro 28, 2014

QUEM AMA O FEIO...


            Só namoro homens bonitos” dizia Cremilda. Bonita que só ela jamais havia encontrado dificuldade em manter esta máxima que mais era uma promessa.  Até que surgiu Jacinto. Feio que só ele. Um susto mesmo! O aceitar o convite para dançar no baile de formatura da Rosa foi assim como uma caridade. Surpreendeu-se pensando “como ele dança bem!” enquanto girava em seus braços. Pouco falaram. Ele disse o nome; ela disse o dela e ficou por ai.

Depois o viu dançando com Soninha que ria muito de alguma coisa que ele havia dito. Isto a perturbou: com ela não havia falado praticamente nada. Coisa esquisita. Curiosa perguntou à Soninha: “quem é?” Ficou no espanto da resposta: “é um sujeito incrível. Divertidíssimo. Marcamos um cinema amanhã". Aquilo, sabe-se lá por que, a incomodou. Jacinto não havia demonstrado o menor interesse por ela.

Dias depois, na praia, Jacinto aparece na barraca acompanhando Soninha e, num à vontade incrível, enturmou-se de estalo. Encantador parecia ter sempre pertencido ao grupo que o aceitou de imediato. Fora um “como vai?” distraído e sorridente, não lhe dirigiu palavra. Isto a deixou embasbacada. Havia-se habituado a ser o alvo das atenções dos rapazes e a aparente indiferença de Jacinto era desagradável. Inexplicável mesmo. A coisa piorou quando ele pediu emprestada a prancha de surf do Pedro... e deu um show! Soninha encantada com o sucesso de Jacinto, deitou falação: “ele morou muito tempo na costa oeste dos Estados Unidos. Fez universidade lá”.  Não resistiu e perguntou à Soninha: “você tá ficando com ele?” Ela sorriu e não respondeu. “Vai ver tem vergonha de dizer”, ela pensou, “ele é tão feio”.

A tarde já ia caindo quando a turma saiu da praia combinando o encontro para mais tarde à noite. Ai ela não agüentou e perguntou: “você vai?” E não entendeu porque ficou decepcionada com a resposta: “não vai dar...” Naquela noite a reunião da turma no bar de sempre foi uma droga. Jacinto não saia de sua cabeça.  Insistiu com Soninha: “você está ou não está ficando com ele?” Ela riu e respondeu: “bem que eu queria. Ele é o máximo. Mas acho que tem alguém na jogada”. E ela, contrariando sua máxima resolveu: ia procurar se aproximar dele. Mas não contava com o sumiço. Porque ele sumiu, evaporou-se! Atacou Soninha de perguntas. E ela ou fez-se de desentendida ou não sabia mesmo onde ele andava. Fato é que nem o número de telefone foi conseguido.

E Jacinto virou uma obsessão. Já nem dormia direito e, quando dormia, sonhava com ele, feio daquele jeito, sobre as ondas, surfando. Um dia, saindo da Faculdade o viu de longe, na direção de um carro estacionado bem em frente.  O coração parou e ela dirigiu-se para o carro disposta a abordá-lo... e ele engrenou uma primeira e partiu sem perceber sua presença.  Ficou ali tremendo, quase chorando. Podia aquilo? A partir daí todos os dias deixava-se ficar sentada na escadaria da Faculdade, por horas a fio, na esperança de que ele reaparecesse. E nada. Ficou triste, muito triste. Tão triste que pensou até em não ir à festa que Soninha dava todo fim de ano e que era um estouro. Soninha escandalizou-se: “só faltava mais esta! Tem que ir! Qual é!”

E ela fez das tripas coração e lá se foi sem mesmo caprichar no visual. Deixou-se ficar na varanda, olhando mar que ele dominava tão bem. De repente uma voz a acorda do sonho: “como vai?” e ela foi às nuvens. Era ele! Sorrindo para ela. Sem dizer palavra ele a pega pela mão e saem dançando. Ali mesmo na varanda onde se deixaram ficar por horas. Foi tão estranho. Parecia que sempre haviam se falado. As palavras vieram soltas, sem censura, verdadeiras. Foi bom. Foi tão bom. Quando à meia noite foram chamados para cantar o parabéns pra você, entraram na sala de mãos dadas como se estas sempre estivessem estado unidas. Viram o dia amanhecer juntos, muito juntos.


Dias depois ela achou que deveria apresentá-lo aos pais. Afinal o namoro estava firme e até faziam planos para o futuro. E ele veio, convidado para um almoço. Com sempre encantou a todos. Houve somente um pequeno incidente. Quando ele se foi ela encheu os pais de perguntas. Queria, precisava muito saber o que haviam achado.  Radiante ouviu dos pais e do irmão os comentários mais que favoráveis. Até o momento em que a mãe incauta declarou: “pena que é tão feio!”. Furiosa, agressiva até, ela responde aos gritos para espanto de todos: “Feio?! Ele?! Pois fiquem sabendo que Jacinto é um gato!” 

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

FATAL ERRO DE JULGAMENTO

           Rosalinda e Peter formam um lindo casal. Por onde passam olhares acompanham com admiração as deslumbrantes figuras que se rivalizavam em beleza. Difícil dizer qual dos dois o mais bonito. Ela, negra brasileira de olhos verdes; ele, sueco de cabelos louros e olhos azuis. São tão bonitos que nem os mais preconceituosos ousariam condenar a formação do casal que se complementa em tudo. Até na maneira de ser: Rosalinda é expansiva, risonha, comunicativa e fala pelos cotovelos; Peter doce, calmo e calado. Muito calado. Até mesmo com a mulher pouco fala. Seu amor, do qual ela não tem a menor dúvida, revela-se através de gestos carinhosos e olhares apaixonados que demonstram o deslumbramento que a mulher lhe causa. Ao invés de falar prefere ouvir as confidências de Rosalinda. Estas são, quase sempre, sobre o sonho e o desejo que mantém desde criança: atuar em um filme.

O mutismo de Peter, estranhamente, não ocorre quando fala ao telefone! Nestas ocasiões ele é capaz de falar longamente. Nunca se soube por que razão é assim. Mas o fato é que é e sempre que necessário um maior tempo de discurso liga para a mulher e deita falação. Isto não incomoda Rosalinda que até vê certo charme nestas comunicações telefônicas. Em todos os anos de casados apenas um pequeno senão havia balançado as certezas de Rosalinda sobre o marido: um comentário inusitado que ele havia feito sobre Amanda, a mulher de um amigo. Peter surpreendera a todos ao comentar os lindos cabelos da moça. Um absurdo para quem nunca, mas nunca mesmo, emite qualquer opinião sobre alguém. Rosalinda sentiu um aperto no coração. Os cabelos da amiga eram lisos e lhe caiam pelos ombros num movimento leve, delicado, suave. Os cabelos de Rosalinda, cuidadosamente tratados, também são lindos formando uma perfeita moldura para seu rosto, mas não são lisos e muito menos longos. Ao contrário formam um capacete negro que fazem com que Antunes, o profissional que deles cuida semanalmente, se dirija a ela como “rainha etíope”. O elogio nunca surtiu efeito.


Rosalinda guarda dentro de si um desencanto: o marido não gosta de seus cabelos e desejaria que os tivesse diferentes. Jamais ousou perguntar. Uma das maiores qualidades de Peter é uma extraordinária sinceridade. Vai que ele confirma suas desconfianças? Seria insuportável saber a verdade; ouvi-la de seus lábios. Vai daí que ela guarda esta mágoa em silêncio. Ontem, Peter ao acordar comunica que um amigo de infância, um grande amigo, está no Rio de Janeiro e ele o havia convidado para jantar no dia seguinte. Pede então a ela que se prepare em sua melhor forma e, horror dos horrores, sugere que vá ao salão para arrumar os cabelos. Coração sangrando Rosalinda marca hora para o dia seguinte.

E é uma Rosalinda destroçada que entra no salão de Antunes. Olhando-se ao espelho ela toma coragem e decide: pede a Antunes que providencie um perfeito alisamento em seus cabelos colocando apliques que os torne longos, muito longos. Em vão Antunes tenta demovê-la deste propósito. De todas as suas freguesas Rosalinda é a que mais lhe causa orgulho. Em vão: Rosalinda exige. E é um Antunes triste que se desincumbe da tarefa de eliminar o volume majestoso da cabeça de sua mais querida freguesa. Obra terminada Rosalinda pensa o quanto Peter ficará orgulhoso de exibi-la ao amigo. Finalmente o único senão que havia entre eles havia sido eliminado.


Neste momento o celular toca. Ela sorri: é Peter que, com certeza, precisa comunicar alguma coisa que merece uma falação mais longa. Vai ver quer discutir sobre qual restaurante merece a ida de um sueco recém chegado ao Brasil. E Peter começa a falar excitado. Não vai conseguir guardar o segredo até a noite. Precisa contar a verdade. Seu amigo, um cineasta sueco, procurava uma negra brasileira belíssima para protagonizar seu próximo filme. E Peter pensou: mais bela que minha Rosa Linda impossível. Então ele havia enviado fotos dela e o amigo havia enlouquecido. Estava vindo ao Brasil para conhecê-la e, certamente, contratá-la. Peter comenta: você é exatamente o que ele havia sonhado. Ficou maravilhado com seus cabelos!!! E completa o horror: como eu, meu amor, são lindos! Em desespero Rosalinda olha sua imagem no espelho.  

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

O ROSTO DESEJADO

Maria do Socorro escondida no quarto chora em silêncio. Choro manso de muitos anos. Em seu ateliê Maurício pinta mais um retrato. As telas encomendadas por noivos, maridos e pais revelam belos rostos que a atormentam. Nunca, nunca mesmo, o marido a quis retratar. E isto dói! Um dia, ficou arrasada com a pergunta que lhe fizeram: ele não pintou  um retrato seu? Antes que pudesse responder Maurício adiantou-se como se a pergunta fosse a ele dirigida: pra quê?  Ele me acha feia, ela pensou, e felizmente não esclareceu o “pra quê”. E então veio o medo de que um dia ele, distraído, verbalizasse toda a verdade.

No casamento de muitos anos Maurício era de pouco falar. Vivia lá pra dentro de si mesmo, pensando sabe-se lá o quê. Às vezes o pegava olhando para ela com uma expressão estranha. Um dia tomou coragem e quis saber a razão daquele olhar mudo. Vai ver significava a comparação de seu rosto com todos aqueles outros. Tão lindos. E ela feia, tão feia. Mas apenas riu. Ele era assim. Nunca dizia nada. A paixão com que ele a possuía nas noites, muitas noites, era por ela entendida como o desejo provocado pela beleza daquelas moças. É isto. Ele as deseja. E como não as pode ter as recria em meu corpo. 

Passou a odiar as telas. Era um alívio quando as via sair porta afora levadas pelos noivos, maridos e pais. Menos uma, pensava. Mas não adiantava porque surgiam outras e outras. Resolveu não entrar mais no ateliê.  Era insuportável a visão do que era criado pela paixão, pelo desejo do marido. Sofria ao ver a volúpia com que o pincel e a espátula – extensões de suas mãos – acariciavam a tela onde os rostos pareciam  mais vivos do que os modelos. As moças – tão belas -  não representavam uma ameaça. Iriam desaparecer nos braços de seus pais, maridos e noivos. Mas as imagens na tela, estas não. Pertenciam a Maurício, para sempre. Ficariam gravadas em sua imaginação de criador.

Naquele dia o sofrimento se fez maior: todos os fantasmas que a atormentavam seriam expostos e ela deveria acompanhá-lo ao coquetel de abertura do evento. Tentou desculpar-se. Melhor seria não ir. Inventou um motivo tolo que provocou em Maurício aquele olhar mudo e esquisito.  Seria um suplício vê-las num conjunto ameaçador e, o que seria pior, ser vista por Maurício e por todos, numa comparação cruel. No espelho, o rosto coberto de lágrimas não ajudou. Feia! Sou feia! Sabe-se lá porque de repente se viu possuída por um sentimento novo. Raiva. Era raiva, sim, o que sentia. Pela primeira vez resolve partir para o ataque.

Enxuga as lágrimas e sai à procura da beleza que tanto lhe falta. Volta horas depois com um enorme embrulho. De novo em frente ao espelho olha esperançosa a profusão de produtos de maquilagem que vão garantir o milagre da beleza.  Frenética começa a obra. Mas nada parece dar certo. A ideal da beleza vai ficando cada vez mais distante. A depressão e a tristeza tão suas conhecidas de novo se instalam e as lágrimas voltam aos olhos borrando mais ainda a obra imperfeita que suas mãos inábeis criam ao manejar as sombras, as bases, os lápis, os batons.


E é nesta desolação que escuta a voz de Maurício: vem. Já estamos atrasados. Derrotada, ela pensa: desisto!  Um dia teria que acontecer. Nem se preocupa em lavar o rosto. Abre a porta e se revela a Maurício: sou feia, não sou? Diz! Fala. Mais uma vez aquele olhar estranho e mudo. Para sua surpresa ele a pega pela mão e delicadamente a faz sentar-se frente ao espelho. Com enorme carinho começa a modelar seu rosto. Por suas mãos mágicas os cremes, as sombras e os batons realizam o milagre da beleza. E ela é a tela. Maravilhada, vê surgir no espelho a imagem de uma mulher bela. Maurício já terminou a obra, mas estranhamente não parece surpreso com sua criação. Seu olhar é o olhar de sempre. Aquele que ela não entende. Aquele do qual tem medo. E ela suplica: não me olhe assim. Por uma noite você esqueça que sou feia. Você conseguiu. Todos que lá estiverem  me verão bela. E é deslumbrada que escuta a revelação na voz do marido, que se faz doce, tão doce: É!  É isto eu que eu mais temia. Eu sempre te soube linda. Mas te queria só pra mim! Se eu te transpusesse para tela, as outras, todas as outras, se veriam feias. 

terça-feira, fevereiro 25, 2014

O BROCHE DE DONA OTÍLIA

D. Otília vive seus últimos momentos. Ao redor da cama todos os membros da família Mendonça aguardam ansiosos. O testamento da velha prima, podre de rica, nunca havia sido revelado guardado que estava a sete chaves numa firma de advogados. Durante anos esperavam por aquele momento. Afinal eram os únicos parentes. Nos últimos dez anos, quando a velha não mais se levantava, revezavam-se em visitas relâmpago, cada um procurando suplantar o outro com frases feitas e declarações fingidas. A velha a tudo escutava muda, mas sorrindo. Um sorriso muito estranho, mas não de menos, um sorriso. E este acalmava as dúvidas: era evidente que havia entendido.  Vai ver não falava, impedida pela emoção. Ou, de tão velha, esquecera-se das palavras. O fato é que não falava.

O médico se aproxima da cama e se inclina sobre a velha senhora. Levanta-se encarando a família e murmura: acabou. Os Mendonça mal disfarçam a alegria. Uma única pessoa se entristece: Margarida, a acompanhante que a tudo assistia a um canto do quarto. Afeiçoara-se à velha. Foram anos de convívio e de conversas. Conversas, sim. Com Margarida o sorriso se traduzia em palavras. E foi assim que ao longo de intermináveis noites e dias trocaram histórias de vida. Margarida encontrou na velha uma ouvinte como nunca havia tido.


Criada num orfanato havia aprendido a calar-se sobre si mesma. Lá não havia o individual. Apenas o coletivo importava. Maravilhou-se quando logo nos primeiros dias de convívio D. Otília ordenou, quase severa: fale-me de você. E ela percebeu, pela primeira vez na vida, que existia como pessoa. E deitou falação. Falava de tudo, do que sentia, do que pensava e, sobretudo, falava de Jonas! Jonas, o bombeiro por quem havia se apaixonado. E foi correspondida! Tanto que se casaram. Nos últimos anos, o assunto ainda era Jonas.  D. Otília se interessava e curiosa perguntava: nada lhes falta agora, Margarida? E a moça: nada, D. Otilia, nada mesmo.  D. Otília duvidava: alguma coisa vocês hão de querer!  A moça ria gostoso: deixa pra lá, D. Otília.

Margarida adorava as histórias de que a senhora lhe contava. Lembranças da infância, juventude e, sobretudo, do casamento muito feliz com o Comendador que já se fora há anos. Depois de sua morte Margarida havia sido sua única amiga. Faziam-lhe bem as conversas com a moça. Como Margarida, não havia tido filhos e, também como ela, havia tido uma infância solitária. Família apenas aqueles primos distantes que a tinham como louca. E ela ria, ria muito, imaginando o que dela pensavam. E perguntava à Margarida: nunca ouviu qualquer comentário deles sobre o broche? A moça bem que tinha escutado, mas se absteve de falar. Não era uma leva e traz! Mas mesmo ela achava esquisito aquele broche de chumbo sempre, pregado à camisola de linho finíssimo. Por várias vezes quis perguntar a D. Otília o porquê daquilo, mas continha-se. Afinal era a única manifestação de insanidade da velha e não fazia mal a ninguém. O broche, uma bijuteria muito antiga, representava um enorme macaco com olhos de pedras falsas vermelhas. Um horror.

E eis que chega o dia da abertura do testamento. Estarrecidos os Mendonça escutam: todos os meus bens para o asilo em que Margarida foi criada. Todo o valor deve ser usado para que as crianças tenham todas as possibilidades, sobretudo a de serem escutadas. Uma única exceção: o meu broche deverá ser dado à Margarida e a Jonas. E este deverá providenciar para que seja derretido. Foi um Deus Nos Acuda! Os primos tentam, sem sucesso, embargar o testamento. Impossível. Os advogados, ainda que o achassem estranho, atestam a sanidade da senhora na época em que havia sido redigido.


Margarida exulta com a doação ao orfanato. E confidencia a Jonas: quando ela me perguntava o que eu queria eu tinha vontade de dizer que era isto. Mas nunca tive coragem! Envergonhada confessa: eu também queria dizer que a gente queria comprar uma casa. Mas ela podia pensar que eu estava pedindo, não é? Jonas riu: ela bem que podia ter adivinhado isto também! Mas vamos lá derreter o macaco. Os dois, solenes como numa cerimônia fúnebre, assistem o desfazer do broche numa panela sobre o fogão. Espantados escutam o riso maroto e alegre de D. Otília, no momento em que da cabeça do macaco surge um enorme diamante!  Outro logo depois é revelado na barriga. Dentro da panela, reluzindo, estava a nova casa.  

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

POR UM FIO


Foi mesmo por um fio (e não é força de expressão) que a vida de Claudionor se transformou num inferno. Tudo começou com um sonho que, como todos os sonhos parecia irrealizável, mas era tão gostoso imaginar que um dia, quem sabe... Sonho de artista. Por que Claudionor era um. E dos melhores. Como tal havia se revelado desde muito pequeno. Foi um espanto quando aos quatro anos, munido de uma tesourinha sem ponta, realizara um corte nos cabelos da boneca da irmã com tal perfeição e requinte que deixou a todos abismados.

À medida que os anos passaram deixou de lado as bonecas e passou a ser responsável pelo corte dos cabelos da irmã, das primas, da mãe e depois de quem mais aparecesse buscando sua mágica tesoura. Foi inevitável a sua profissionalização aos dezoito.  Em pouco tempo tornou-se dono do salão mais badalado da região. Por que sua fama havia extrapolado o bairro e até mesmo a cidade.

Foi ai que o sonho se tornou obsessão: a procura da cabeleira perfeita. Aquela que pelo brilho, textura, volume e cor prescindisse de qualquer tratamento e fosse digna apenas de uma tesoura: a sua. Só então seu talento poderia ser revelado em toda plenitude. Claudionor não era um homem reservado e descrevia a torto e a direito, a quem quisesse ouvir, os encantos daquela mulher ideal dotada com a mágica cabeleira. Em sua imaginação era linda, deslumbrante mesmo e no dia em que a encontrasse com ela se cairia de amores. E, mais ainda, não tinha dúvidas quanto à retribuição deste amor pela bela sonhada.

Em suas horas de folga andava pelas ruas, olhar atento, fixado nas cabeças passantes que por vezes afastavam-se com medo, tal a expressão de angústia do rapaz. Na verdade ele sofria. E muito. Alguma coisa lhe dizia que ela estava perto. Muito perto. No salão tremia quando a atendente informava que uma nova freguesa havia reservado uma hora. Acendia-se a esperança: é ela! E nunca era.

No pequeno restaurante ao lado do salão, onde almoçava todos os dias, os frequentadores habituais sabiam da obsessão do rapaz e divertiam-se com sua aflição na observação das moças que passavam pela calçada. Em sua mesa, sempre em frente à janela, mal olhava o que estava comendo obcecado na busca de seu objeto de desejo. O que ele não sabia e nem sequer pressentia era que ali, era ele também era objeto do desejo de alguém. Socorro, a garçonete, uma moça muito triste e calada, morria de amores por Claudionor. O bom dia distraído que ele lhe endereçava era como poesia. Ela vivia cada noite na esperança de ouvi-lo no dia seguinte. Sabia que era o máximo que poderia obter dele e até se conformava com isto. Só não suportava a espera que lhe causavam os dias de segunda e domingo, quando não o via.

Em seu quartinho, à noite, com um prazer sensual, acariciava uma caixinha de madeira onde guardava todas as moedas que lhe haviam sido dadas, como gorjeta, por Claudionor. Eram para ela como jóias. Mais bonitas que as da rainha da Inglaterra, pensava. E o único momento em que se permitia ser feliz era quando suas mãos trêmulas de amor e desejo as tocavam. Pudera! Haviam sido tocadas pela mão dele! Mas logo lhe vinha à lembrança a bela mulher dos cabelos perfeitos descrita com detalhes por Claudionor. Então se olhava no espelho e chorava.

Sofrimento maior ainda estava por vir. Socorro recebe um telegrama de casa informando a morte do pai e convocando-a para que retornasse imediatamente para cuidar da mãe. Era a separação para sempre. À noite prepara-se para partir com um estranho ritual: feita a mala com seus poucos pertences, vestida com esmero nunca visto, coloca-se em frente ao espelho e retira da cabeça o lenço branco que sempre, sempre mesmo, lhe esconde os cabelos. E deixa cair sobre os ombros uma luxuriante cabeleira que por promessa feita a Santo Expedito das Causas Perdidas, só seria revelada a aquele que seria seu marido. O rosto, sempre triste, tão triste, emoldurado pelos cabelos tornara-se belo num passe de mágica. Mas estava coberto de lágrimas. E foi neste momento que veio a raiva. Muita raiva. Raiva que lhe traz um desejo de vingança contra quem lhe traíra sem saber.


No dia seguinte Claudionor não se dá conta da ausência de Socorro e nem mesmo percebe seu rosto descomposto na janela do ônibus que passa em frente, levando-a para sempre. Neste momento aproxima-se o dono do restaurante com um envelope a ele endereçado informando que haviam deixado em baixo da porta. Pálido e trêmulo ele retira do envelope um longo fio de cabelo. Exatamente aquele com que sempre havia sonhado e que jamais seria tocado por suas mãos num corte mágico. Era a desesperança e o fim do sonho perdido por um fio. E, ao mesmo tempo, já com uma grande distância entre os eles, Claudionor e Socorro choram em desespero.  

domingo, fevereiro 23, 2014

O PODER DO SONHO

      O que havia de mais extraordinário naquela pequena cidade eram as donas do único salão de beleza. Eram quatro e desde crianças, amigas de fé. Rosa, negra lustrosa de olhos grandes; Misuko, nisei doce e calma; Fátima, bela morena filha de libaneses e Jandira, cabelos negros e escorridos herdados dos avós índios. Acrescentando mais tempero a esta salada de raças cada uma delas caiu-se de amores pelo irmão de outra e foI correspondida.  Casaram-se no mesmo dia e as famílias, que faziam gosto, deram nó em pingo d’água para conciliar a fé de cada uma à cerimônia.

     Passaram a viver como uma comunidade em que os filhos, lindas crianças mestiças, tinham em cada um deles pais tão carinhosos quanto os próprios. Porque havia um aspecto os tornava iguais: haviam aprendido desde cedo a aceitar e valorizar a riqueza das diferenças. As quatro se rivalizavam em competência e talento. Mais que isto se tornaram especialistas na criação de penteados que levavam toques de suas raças. O sucesso foi tanto que foram ficando mais ousadas: passando a agregar aos penteados objetos de adorno de suas origens que chamavam atenção naquele interior tão pacato. Quem chegasse à cidade espantava-se ao ver desfilar senhoras ostentando sobre os cabelos primorosamente arrumados penas, pentes de marfim, pedras brilhantes e conchas.

      O salão que havia sido criado para complementar o salário dos maridos na fábrica de tecidos, única razão de ser da cidade, passou a ser a principal fonte de renda e fervilhava de clientes vindos de cidades vizinhas bem mais importantes. Tudo ia às mil maravilhas até que D. Arminda, senhora do Prefeito, caiu em depressão. Era ela a líder social da cidade e uma das mais entusiastas clientes do salão. Era triste de se ver aquela mulher tão vaidosa, tão ciosa de sua aparência, transformada num frangalho: desgrenhada, metida num roupão velho e imóvel numa cadeira do quarto, apenas chorava. O médico, o padre e a família tentaram de tudo e nada funcionou.


      Foi ai que as quatro amigas resolveram entrar em campo: apresentaram-se na casa da senhora carregando misteriosas sacolas e trancaram-se no quarto com ela sem dar qualquer explicação. Durante muito tempo a família, grudada na porta pela curiosidade e pela aflição, escutava apenas murmúrios. De repente uma risada gostosa e quase caem de espanto. Era sem dúvida o riso de Arminda! Agora riam todas, falando ao mesmo tempo! E a porta se entreabre deixando passar Rosa que ordena a todos que coloquem em semicírculo como para assistir a um espetáculo. Num gesto teatral apresenta D. Arminda que surge vestida com um quimono luxuriante (traje de casamento da avó de Misuko), trazendo ao pescoço um colar de pedras da mãe de Fátima tendo os cabelos num penteado afro adornado por um cocar de luxuriantes penas coloridas. Radiante ela declara: eu havia esquecido de sonhar.

      A notícia correu célere pela cidade. E, no início, timidamente e depois mais audaciosas, as clientes do salão começaram a exigir uma sessão de sonhos. Saiam do salão travestidas nos mais estranhos aspectos... mas lindas. Estavam ousando sair da rotina entregando-se à fantasia. Filhos, maridos, irmãos passaram a ver nelas outras pessoas: mais alegres, mais moças, mais felizes. Foi uma reação em cadeia. Até a fábrica, tão cinzenta e triste, coloriu-se com operárias ostentando penteados e roupas extraordinárias. No início houve certa reação dos encarregados até perceberem que todas trabalhavam mais e melhor.


      E eis que o Governador do Estado resolve visitar a cidade. Ao descer do carro seu olhar demonstrou o espanto ao ser recebido também por D. Arminda que, como todas as demais senhoras presentes, havia passado o dia anterior no salão e apresentava uma de suas criações mais requintadas. Foi discreto, no entanto, e saudou o Prefeito perguntando: acredito que o senhor tenha agendado uma visita à fábrica. Antes que este pudesse responder, D. Arminda adianta-se: a qual das duas o senhor se refere, Governador? O Governador espanta-se: Duas?! Só tenho notícia de uma. A de tecidos. E D.Arminda sob os aplausos da população que cercava a comitiva responde: Temos outra. Muito mais importante. A fábrica de sonhos! Lá aprendemos que somos todos iguais.

sábado, fevereiro 22, 2014

ESTÁ NA MODA


Nenhum dos muitos projetos do arquiteto Adalberto Brandão lhe causava tanto orgulho quanto o da reforma de Sarita, sua mulher. É... Sarita era um projeto. Bem sucedido como todos os que lhe saiam das mãos. Fazia tempo que a havia visto pela primeira vez, naquela pequena cidade do interior. A espera do conserto do carro, afinal, havia se revelado proveitosa! Havia finalmente encontrado aquela que poderia transformar, esculpir, educar e sobretudo, vestir. E ele, esquecido do compromisso que o aguardava, partiu para o ataque. Sem chance, Sarita sucumbiu. Adalberto era um belo homem e ainda por cima rico e de sucesso.

Mas, acreditem, não foi por isto! A verdade é que Sarita caiu-se mesmo de amores e foi assim que se deixou transplantar para cidade grande, feliz que só ela. Passaram-se meses até a inauguração de Sarita. Confinada no pequeno apartamento em que Adalberto a havia escondido, passava dias e noites sendo “remodelada” por profissionais de beleza, comandados por Adalberto. Ela via nisto uma prova de amor e empenhava-se e como se empenhava. Até que se deu o grande dia em que foi apresentada por Adalberto, a seu circulo de amigos, como namorada titular.

Numa história confusa sua origem foi modificada o suficiente para evitar que a curiosidade dos amigos revelasse a origem humilde de Sarita. E foi assim que a namorada passou a noiva e de noiva a mulher. Filhos nem pensar. Sarita tinha uma missão definida: aparecer. E como aparecia! Adalberto havia tomado gosto pela coisa e, ao longo dos anos, continuava empenhado na educação de Sarita que, ótima aluna, passou a ditar modas. No princípio apenas comentadas e seguidas pelas invejosas mulheres dos amigos de Adalberto. Aos poucos foi sendo citada nas colunas sociais e num piscar de olhos ascendeu às revistas e, maravilha das maravilhas, tornou-se capa da Vogue.

Adalberto não cabia em si. Remodelou toda a cobertura para que se tornasse uma moldura digna do objeto Sarita. Cada cor de parede, cada móvel, foi escolhido buscando a harmonia perfeita com a moça que brilhava cada vez mais. Mas lá por dentro de Sarita nem tudo era perfeito. Foi lá pelos cinco anos de casamento que começou a surgir, insidiosa, uma insatisfação esquisita. Falta de alguma coisa que ela nem sabia o que era. Só falou disto a Mauro, o pária do grupo de amigos. Mauro era mesmo um estranho no ninho. O sócio de Adalberto era tolerado apenas por seu talento como arquiteto. Um esquisitão, diziam. Mas era o único com quem Sarita conversava de verdade. Fazia-lhe bem o sorriso calmo, a ausência de ostentação, o modo tranqüilo de ser.

Quando ela falou Mauro apenas sorriu e murmurou: é uma fase. Acontece. Vai passar. E ela aliviada pela doçura das palavras, acreditou, e ficou mais ligada a ele. Conversavam muito, Assuntos bem diferentes daqueles que povoavam as conversas baldias do grupo que, extrapolando o vestir, discutiam comportamentos os mais esdrúxulos. Estes também podiam estar na moda... ou fora dela. E conforme fossem classificados eram ou não aceitos.
Um belo dia programou-se um fim de semana numa bela mansão em Itaipava. Sarita se encantou quando soube que estava escalada para ir no carro de Mauro. A “moda” naquela estação era separar casais. Um imprevisto fez com que se retardassem, partindo um pouco depois da caravana, já meio a uma tempestade. E eis que pela segunda vez, o acaso dá uma reviravolta no destino de Sarita. A conversa corria solta e gostosa quando ela num gesto nada elegante, tira os sapatos e coloca os pés apoiados no pára-brisa. Mauro sorri: você está linda assim. Parece uma menina. E ela recorda do tempo em que fazia isto na velha caminhonete do pai. E vem o grito mudo interior: Não sou feliz!


Neste momento em frente a eles desaba uma barreira bloqueando a estrada. Mauro freia a tempo. Atrás nenhum carro. O jeito é dar meia volta e avisar aos carros que porventura estejam subindo, mas outra barreira desaba atrás e os dois se vêm isolados do mundo entre duas montanhas de terra. E foi ai que dentro deles outras barreiras desabaram. Assustados e felizes, molhados pela chuva que agora caia fina, sujos de terra, lhes vem a certeza de que aquela sensação de felicidade plena havia chegado para ficar. Mauro preocupa-se: como revelar a verdade a Adalberto? Sarita sorri: deixar o marido pelo amigo? Ora, Mauro, está na moda!                   

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

POR UM BATOM


Nem mesmo eles são capazes de recordar o porquê da discussão. Certamente não foi um motivo grave. Vinham brigando muito, naquele tempo. A troco de tudo e de nada. Mas naquele dia, vai ver porque estavam os dois mais irritados, mais intolerantes, a briga foi crescendo de intensidade e chegou a seu clímax quando ele descobriu o batom no fundo da gaveta onde procurava meias limpas.

Foi um Deus nos acuda. Os adjetivos mais leves com que ele a rotulou foram: perdulária e irresponsável! O que ganhava mal dava para o aluguel e para o armazém (ainda não existiam naquele subúrbio, os supermercados). Como é que ela tinha tido a desfaçatez de comprar um batom! Provavelmente caro. Caríssimo. Tão caro que o havia escondido sabendo do malfeito que estava cometendo. Ela, até então perdida em lágrimas, reagiu. Havia comprado com as economias que fazia para se tornar bela para ele. Para ele! Não merecia! Não merecia mesmo!

Foi então que ele passou dos limites. Duvidou que fosse para ele! Vai ver, enquanto trabalhava como um condenado para sustentar a ela e a casa, ela se embonecava para outro! Foi a gota d’água. Na revolta da acusação, ela gritou: Canalha! E, de tanta raiva, nem ouviu o estrondo da porta que bateu quase se soltando das dobradiças, no momento em que ele saiu. Gente! Acreditem! Saiu para sempre. Só ao cair da noite, hora em que ele habitualmente chegava foi que ela se deu conta de que havia sido abandonada.

Começou a sofrer... e não parou mais.  Mas não foi atrás dele. Era uma mulher de fibra e o amor próprio falava mais alto. Com ele foi diferente. Na raiva, sem bagagem, tomou um ônibus para São Paulo. Abandonou tudo atrás de si: a mulher, o emprego, a vida de até agora. Iria começar tudo de novo sem confiar mais nas mulheres. Com a ajuda de um amigo que tinha por lá recomeçou mesmo. E põe recomeço nisto. Mudou da água para o vinho: era um homem pacato, caseiro. Em São Paulo transformou-se num farrista de alto bordo. O que ganhava com o novo emprego que arrumou, gastava na noite: era o rei dos forrós e das serestas.

E as mulheres? As conquistava às dúzias sem o menor critério de escolha. Caia na rede, era peixe. Não se prendia a qualquer uma delas. Julgava-se feliz mas... não se dava conta que sua constante atividade noturna não lhe dava tempo para pensar. Em que? Em nada. Nada mesmo.  Mal parava no quarto em que morava numa república.

Mas eis que um dia começou a se sentir mal. Muito mal. O amigo chamou um acadêmico de medicina, companheiro das noitadas. Hepatite!. Que droga! O raio do tratamento era sobretudo repouso e durante muito tempo. E foi ali deitado sem ter o que fazer que teve início aquela coisa esquisita. Perfumes começaram a invadir o quarto. Isto mesmo: perfumes. Perfume de sabonete, de rabada com agrião, de cabelo lavado, de roupa de cama lavada com patchuli  e de mais um outro que não conseguia identificar, mas que era o mais constante. Estou ficando maluco, pensou ele.

Ao amigo que o visitava nada confidenciou. Comendo a quentinha que lhe vinha da pensão ao lado ele ruminava sobre os perfumes. Que diabo é isto? Estavam se tornando cada vez mais fortes. Chegavam acordá-lo. Pode isto? Seria efeito da hepatite? Cauteloso perguntou ao acadêmico que veio avaliar seu estado. O rapaz riu muito e respondeu: isto é falta de mulher, cara!.Tu tá sentindo é cheiro de mulher! A informação caiu como um raio! Era sim, cheiro de mulher. De sua mulher! Dela! Deu-se conta de que aquele que não identificava era cheiro do batom. Daquele batom que lhe havia destruído o casamento que agora sabia feliz.

Pela primeira vez na vida, chorou. Chorou muito. Saudades dela. Do perfume dela. Mas no dia seguinte, reagiu. Desobedecendo às ordens do acadêmico levantou-se e mais uma vez resolveu recomeçar. No ônibus que o levava para o Rio de Janeiro agarrava-se ao embrulho do presente que havia comprado. A vendedora da loja nem havia acreditado quando fez o pedido. Esbaforido quase põe abaixo a porta da casa. Em nenhum momento teve medo de que ela não o houvesse esperado. Sabia do seu amor. Tinha certeza.

Ela abre a porta e olha para ele. Ficam imóveis, olhando-se, sem se tocar. Ele abre o embrulho e deixa cair no chão as dezenas de batons de todas as cores, marcas e formas e diz: pra você ficar bonita pra mim. Pra sempre. 

Há anos isto ocorreu e durante todos estes anos ninguém entende porque a cristaleira da sala, ao invés de copos, exibe uma espantosa quantidade de batons.