segunda-feira, fevereiro 24, 2014

POR UM FIO


Foi mesmo por um fio (e não é força de expressão) que a vida de Claudionor se transformou num inferno. Tudo começou com um sonho que, como todos os sonhos parecia irrealizável, mas era tão gostoso imaginar que um dia, quem sabe... Sonho de artista. Por que Claudionor era um. E dos melhores. Como tal havia se revelado desde muito pequeno. Foi um espanto quando aos quatro anos, munido de uma tesourinha sem ponta, realizara um corte nos cabelos da boneca da irmã com tal perfeição e requinte que deixou a todos abismados.

À medida que os anos passaram deixou de lado as bonecas e passou a ser responsável pelo corte dos cabelos da irmã, das primas, da mãe e depois de quem mais aparecesse buscando sua mágica tesoura. Foi inevitável a sua profissionalização aos dezoito.  Em pouco tempo tornou-se dono do salão mais badalado da região. Por que sua fama havia extrapolado o bairro e até mesmo a cidade.

Foi ai que o sonho se tornou obsessão: a procura da cabeleira perfeita. Aquela que pelo brilho, textura, volume e cor prescindisse de qualquer tratamento e fosse digna apenas de uma tesoura: a sua. Só então seu talento poderia ser revelado em toda plenitude. Claudionor não era um homem reservado e descrevia a torto e a direito, a quem quisesse ouvir, os encantos daquela mulher ideal dotada com a mágica cabeleira. Em sua imaginação era linda, deslumbrante mesmo e no dia em que a encontrasse com ela se cairia de amores. E, mais ainda, não tinha dúvidas quanto à retribuição deste amor pela bela sonhada.

Em suas horas de folga andava pelas ruas, olhar atento, fixado nas cabeças passantes que por vezes afastavam-se com medo, tal a expressão de angústia do rapaz. Na verdade ele sofria. E muito. Alguma coisa lhe dizia que ela estava perto. Muito perto. No salão tremia quando a atendente informava que uma nova freguesa havia reservado uma hora. Acendia-se a esperança: é ela! E nunca era.

No pequeno restaurante ao lado do salão, onde almoçava todos os dias, os frequentadores habituais sabiam da obsessão do rapaz e divertiam-se com sua aflição na observação das moças que passavam pela calçada. Em sua mesa, sempre em frente à janela, mal olhava o que estava comendo obcecado na busca de seu objeto de desejo. O que ele não sabia e nem sequer pressentia era que ali, era ele também era objeto do desejo de alguém. Socorro, a garçonete, uma moça muito triste e calada, morria de amores por Claudionor. O bom dia distraído que ele lhe endereçava era como poesia. Ela vivia cada noite na esperança de ouvi-lo no dia seguinte. Sabia que era o máximo que poderia obter dele e até se conformava com isto. Só não suportava a espera que lhe causavam os dias de segunda e domingo, quando não o via.

Em seu quartinho, à noite, com um prazer sensual, acariciava uma caixinha de madeira onde guardava todas as moedas que lhe haviam sido dadas, como gorjeta, por Claudionor. Eram para ela como jóias. Mais bonitas que as da rainha da Inglaterra, pensava. E o único momento em que se permitia ser feliz era quando suas mãos trêmulas de amor e desejo as tocavam. Pudera! Haviam sido tocadas pela mão dele! Mas logo lhe vinha à lembrança a bela mulher dos cabelos perfeitos descrita com detalhes por Claudionor. Então se olhava no espelho e chorava.

Sofrimento maior ainda estava por vir. Socorro recebe um telegrama de casa informando a morte do pai e convocando-a para que retornasse imediatamente para cuidar da mãe. Era a separação para sempre. À noite prepara-se para partir com um estranho ritual: feita a mala com seus poucos pertences, vestida com esmero nunca visto, coloca-se em frente ao espelho e retira da cabeça o lenço branco que sempre, sempre mesmo, lhe esconde os cabelos. E deixa cair sobre os ombros uma luxuriante cabeleira que por promessa feita a Santo Expedito das Causas Perdidas, só seria revelada a aquele que seria seu marido. O rosto, sempre triste, tão triste, emoldurado pelos cabelos tornara-se belo num passe de mágica. Mas estava coberto de lágrimas. E foi neste momento que veio a raiva. Muita raiva. Raiva que lhe traz um desejo de vingança contra quem lhe traíra sem saber.


No dia seguinte Claudionor não se dá conta da ausência de Socorro e nem mesmo percebe seu rosto descomposto na janela do ônibus que passa em frente, levando-a para sempre. Neste momento aproxima-se o dono do restaurante com um envelope a ele endereçado informando que haviam deixado em baixo da porta. Pálido e trêmulo ele retira do envelope um longo fio de cabelo. Exatamente aquele com que sempre havia sonhado e que jamais seria tocado por suas mãos num corte mágico. Era a desesperança e o fim do sonho perdido por um fio. E, ao mesmo tempo, já com uma grande distância entre os eles, Claudionor e Socorro choram em desespero.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário