sexta-feira, fevereiro 21, 2014

POR UM BATOM


Nem mesmo eles são capazes de recordar o porquê da discussão. Certamente não foi um motivo grave. Vinham brigando muito, naquele tempo. A troco de tudo e de nada. Mas naquele dia, vai ver porque estavam os dois mais irritados, mais intolerantes, a briga foi crescendo de intensidade e chegou a seu clímax quando ele descobriu o batom no fundo da gaveta onde procurava meias limpas.

Foi um Deus nos acuda. Os adjetivos mais leves com que ele a rotulou foram: perdulária e irresponsável! O que ganhava mal dava para o aluguel e para o armazém (ainda não existiam naquele subúrbio, os supermercados). Como é que ela tinha tido a desfaçatez de comprar um batom! Provavelmente caro. Caríssimo. Tão caro que o havia escondido sabendo do malfeito que estava cometendo. Ela, até então perdida em lágrimas, reagiu. Havia comprado com as economias que fazia para se tornar bela para ele. Para ele! Não merecia! Não merecia mesmo!

Foi então que ele passou dos limites. Duvidou que fosse para ele! Vai ver, enquanto trabalhava como um condenado para sustentar a ela e a casa, ela se embonecava para outro! Foi a gota d’água. Na revolta da acusação, ela gritou: Canalha! E, de tanta raiva, nem ouviu o estrondo da porta que bateu quase se soltando das dobradiças, no momento em que ele saiu. Gente! Acreditem! Saiu para sempre. Só ao cair da noite, hora em que ele habitualmente chegava foi que ela se deu conta de que havia sido abandonada.

Começou a sofrer... e não parou mais.  Mas não foi atrás dele. Era uma mulher de fibra e o amor próprio falava mais alto. Com ele foi diferente. Na raiva, sem bagagem, tomou um ônibus para São Paulo. Abandonou tudo atrás de si: a mulher, o emprego, a vida de até agora. Iria começar tudo de novo sem confiar mais nas mulheres. Com a ajuda de um amigo que tinha por lá recomeçou mesmo. E põe recomeço nisto. Mudou da água para o vinho: era um homem pacato, caseiro. Em São Paulo transformou-se num farrista de alto bordo. O que ganhava com o novo emprego que arrumou, gastava na noite: era o rei dos forrós e das serestas.

E as mulheres? As conquistava às dúzias sem o menor critério de escolha. Caia na rede, era peixe. Não se prendia a qualquer uma delas. Julgava-se feliz mas... não se dava conta que sua constante atividade noturna não lhe dava tempo para pensar. Em que? Em nada. Nada mesmo.  Mal parava no quarto em que morava numa república.

Mas eis que um dia começou a se sentir mal. Muito mal. O amigo chamou um acadêmico de medicina, companheiro das noitadas. Hepatite!. Que droga! O raio do tratamento era sobretudo repouso e durante muito tempo. E foi ali deitado sem ter o que fazer que teve início aquela coisa esquisita. Perfumes começaram a invadir o quarto. Isto mesmo: perfumes. Perfume de sabonete, de rabada com agrião, de cabelo lavado, de roupa de cama lavada com patchuli  e de mais um outro que não conseguia identificar, mas que era o mais constante. Estou ficando maluco, pensou ele.

Ao amigo que o visitava nada confidenciou. Comendo a quentinha que lhe vinha da pensão ao lado ele ruminava sobre os perfumes. Que diabo é isto? Estavam se tornando cada vez mais fortes. Chegavam acordá-lo. Pode isto? Seria efeito da hepatite? Cauteloso perguntou ao acadêmico que veio avaliar seu estado. O rapaz riu muito e respondeu: isto é falta de mulher, cara!.Tu tá sentindo é cheiro de mulher! A informação caiu como um raio! Era sim, cheiro de mulher. De sua mulher! Dela! Deu-se conta de que aquele que não identificava era cheiro do batom. Daquele batom que lhe havia destruído o casamento que agora sabia feliz.

Pela primeira vez na vida, chorou. Chorou muito. Saudades dela. Do perfume dela. Mas no dia seguinte, reagiu. Desobedecendo às ordens do acadêmico levantou-se e mais uma vez resolveu recomeçar. No ônibus que o levava para o Rio de Janeiro agarrava-se ao embrulho do presente que havia comprado. A vendedora da loja nem havia acreditado quando fez o pedido. Esbaforido quase põe abaixo a porta da casa. Em nenhum momento teve medo de que ela não o houvesse esperado. Sabia do seu amor. Tinha certeza.

Ela abre a porta e olha para ele. Ficam imóveis, olhando-se, sem se tocar. Ele abre o embrulho e deixa cair no chão as dezenas de batons de todas as cores, marcas e formas e diz: pra você ficar bonita pra mim. Pra sempre. 

Há anos isto ocorreu e durante todos estes anos ninguém entende porque a cristaleira da sala, ao invés de copos, exibe uma espantosa quantidade de batons.  

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