terça-feira, março 04, 2014

A REFORMA DESEJADA


       Marco Aurélio era, aos 30 anos, um esquisitão. Em tudo, cópia do tio avô Ramiro, que lhe havia legado o Casarão. Por isto ninguém se surpreendeu quando ele decidiu nele morar. Até que tentaram convencê-lo a vender. Escandalizou-se o rapaz: vender a casa do Tio Ramiro?! Nunca! Pelo menos faça uma reforma, pediram. Escandalizou-se mais ainda.

E foi assim que Marco Aurélio refugiou-se em meio às paredes cinza e tristes em companhia de uma senhora discreta e muda como o patrão e que se ocupava de todo serviço. Fora os livros e os velhos discos, também legados pelo Tio, nada mais lhe interessava. Nem mesmo as belas pretendentes que acabavam por desistir. Nisto também imitava o Tio Ramiro. Este jamais se interessou pela bela Joana que, morrendo de paixão, retardou o casamento até o último minuto esperando que Ramiro desse apenas um sinal para abandonar o noivo e jogar-se em seus braços. Contava a lenda familiar que no dia do casamento de Joana, Ramiro resolveu galopar estrada a fora em seu belo o cavalo alazão que jamais saia das cocheiras. Quem sabe irritado por ser perturbado em seu eterno descanso o cavalo reagiu e atirou Ramiro ao chão. Acordou dias depois num hospital mais enfarruscado do que nunca.


Além dos livros e os discos só demonstrava interesse por Marco Aurélio que, desde o nascimento, mereceu deste tio atenções nunca vistas, no que era correspondido pelo menino que o adorava. Quando Marco Aurélio veio morar no casarão manteve tudo exatamente como o Tio havia deixado. Única diferença foi a cocheira agora usada como garagem onde o belo carro em nada ficava a dever ao alazão do Tio, mas que nunca era usado.

Um belo dia a governanta sai de seu mutismo para fazer um pedido: uma sua sobrinha ficara órfã e só no mundo. Não tinha para onde ir. Será que poderia vir morar no casarão ocupando o pequeno depósito onde coisas que caiam em desuso eram guardadas? Ela poderia ajudar no serviço. Marco Aurélio concedeu, mas exigiu: desde que não me dirija palavra. E assim foi feito.

Como a apaixonada do Tio Ramiro, a moça chamava-se Joana e como ela era também deslumbrante. Passou a ser uma presença silenciosa junto a Marco Aurélio. Era ela que lhe servia o café, o almoço e o jantar, Os pratos, trazidos numa bandeja enfeitada com uma rosa sempre fresca, se sucediam acompanhados de um leve perfume de lavanda. Coisa estranha: Joana parecia adivinhar quando sua presença era necessária. Surgia do nada, sem ruído, trazendo a xícara de chocolate quente, fechando as cortinas quando a claridade incomodava, preparando a cama no momento em que o sono vinha e escolhendo as roupas que ele desejava vestir, após o banho, que arrumava primorosamente sobre a poltrona do quarto.

Joana havia se incorporado ao casarão e ao patrão. Dois anos se passaram até o dia em que Marco Aurélio ouve pela primeira vez a voz de Joana: é a última vez que lhe sirvo. Eu amo o senhor e isto não pode, não é? Marco Aurélio sentiu uma coisa esquisita quando o jantar foi servido pela governanta que, sem dizer palavra, assumiu todas as tarefas de Joana. Dela ficou no ar o perfume de lavanda que foi sumindo, sumindo até desaparecer por completo. E a coisa esquisita que ele sentia foi aumentando, aumentando e se tornando uma quase dor quando passava pela porta do quartinho que havia sido de Joana.


Alguma coisa tinha que ser feita. Atribuindo o desconforto e o mal estar a aquele quarto que permanecia como Joana havia deixado, decidiu por um recurso extremo: uma reforma! O quarto se tornaria uma despensa apagando a lembrança. É isto! E sem esperar ajuda começou a retirar do quarto todos os objetos que ainda guardavam o perfume de Joana. Ao retirar uma pequena caixa de madeira, curioso, abriu. Nela um embrulho com os dizeres: pertences recolhidos no acidente do doente Ramiro Gomes Teixeira. Entre estes uma carta na qual Tio Ramiro se declarara minutos antes de partir em seu alazão para raptar sua Joana às portas da igreja: meu amor, juntos leremos esta carta onde escrevo o que nunca fui capaz de dizer. E a governanta se assusta quando vê Marco Aurélio passar em disparada em direção à garagem, gritando: preciso entregar a carta! O carro espatifa-se contra um caminhão ao cruzar a estrada. No cemitério, pela carta que nunca recebeu, lagrimas correm pelo rosto bonito de Joana. 

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