Coisa mais absurda o nome que lhe deram: Bela! Porque Bela
era feia. Muito feia. Ninguém sabia, nem ela mesma, de quem havia herdado a
boca torta, os olhos arregalados e aquele nariz enorme. Bela fora deixada na
porta de um asilo com dias de nascida. Mas se a herança havia sido cruel, no
que tocava ao físico, uma enorme compensação se dava em todo resto. Bela era
extremamente inteligente, sensível e corajosa. Mas nem isto ajudou para que
alguma família a quisesse adotar. Tão feia ninguém a queria. Devorou ávida de
saber, os poucos livros que havia no asilo e, lido o último, resolveu fugir.
Pra onde nem sabia. Mas pelo que havia lido pressentia que lá fora outro mundo
havia, onde pessoas viviam aventuras emocionantes.
Não foram fáceis os primeiros dias. Passou fome! Até que
aportou naquela casa, tão bonita, onde além do prato de comida lhe deram
trabalho. Ajudante da cozinheira não tinha que aparecer; como arrumadeira só se
fazia presente nos belos salões quando a família ainda dormia. E foi assim que entre
as cortinas viu Marcelo pela primeira vez. E Bela caiu-se de amores. Amor
impossível, bem sabia. Mesmo assim dava um sentido a sua vidinha tão sem
esperança. Bela quase não dormia. A patroa havia permitido que tomasse
emprestados os livros da enorme biblioteca da casa. Livros que devorava à noite
em seu quartinho. E foi assim que Bela se tornou uma pessoa que sabia das
coisas. Tivesse oportunidade não faria vergonha em qualquer lugar. Mas esta
oportunidade nunca iria existir, pensava ela, que se contentava em vigiar cada
movimento de Marcelo.
Aproveitava as idas à feira para obter informações sobre ele.
Soube que era órfão e muito rico. Morava sozinho naquela mansão. Chegou a rir
quando lhe disseram que era formado em medicina e fazia residência em cirurgia
plástica. Parece piada, pensou: eu tão feia e ele fabricante de beleza! Através das grades do jardim, às escondidas,
acariciava o cãozinho Peteleco que ele adorava e com o qual às vezes o via
brincar. Tocá-lo era como tocar em Marcelo e isto a emocionava. Bela não se
enganava nem se envolvia num sonho como se verdadeiro pudesse vir a ser. Sabia
que o impossível era impossível e contentava-se em amar à distância e que ainda
que esta distância fosse apenas o outro lado da rua, seria para sempre intransponível.
Mas a vida é mesmo imprevisível. Os patrões resolvem mudar
para São Paulo e, feita a mudança, a deixam tomando conta da casa até que o
comprador dela tomasse posse. Ela iria para São Paulo tão logo isto ocorresse.
E, nesta folga inesperada, Bela resolve ir passear na Lagoa. Foi assim que a
bala perdida da perseguição policial lhe destruiu o rosto. Ao acordar no Pronto
Socorro, depois de operada, vê vários médicos ao lado da cama. Marcelo é um
deles! Ele está sorrindo ao escutar o que lhe diz um colega: desta vez você se superou! Incrível o que
conseguiu fazer. Marcelo curva-se sobre ela: como é seu nome? Hesitante ela responde: não sei!
Condoídos todos se dão conta que ela não sabe quem é, não
sabe de onde vem, não sabe nada. A memória se foi, levada pela bala. Sem
documentos, na bolsa apenas o dinheiro da passagem, ninguém procura por ela.
Marcelo envaidecido de seu trabalho dá a Bela uma atenção muito maior do que a
necessária. Outras operações seriam necessárias para arrematar a obra. Aos
poucos Marcelo se encanta com o mistério da origem, a inteligência, a cultura. Passam
horas conversando. E, como nos contos de fada, o amor que, fazia tempo, havia
desabrochado em Bela, encontra o caminho para o coração de Marcelo.
E vem o dia em que Bela, ao retirar definitivamente as
ataduras que lhe envolviam o rosto, se vê maravilhada, verdadeiramente Bela. Irreconhecível.
Nada impede agora um futuro para aquela que não tem passado. No dia em que tem
alta, pelos braços de Marcelo, é conduzida à mansão que vigiava através das
cortinas. Peteleco corre para saudá-los e ela grita: Peteleco! Marcelo assombrado pergunta: Como é que você sabe o nome dele?
Por alguns segundos o coração de Bela dá uma cambalhota. Mas ela se
recompõe, sorri: você me falou dele! Não
se lembra, meu bem?! Marcelo ri: não!
Vai ver amnésia pega! E ela: pois eu me lembro. E é minha única lembrança.
Mas daqui pra frente terei muitas.
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