segunda-feira, março 03, 2014

O TEATRO DA VIDA

      Hoje, passados tantos anos, nenhum deles consegue lembrar como e porque o Teatro havia surgido. Aquela vila de subúrbio era o palco e os pais o público que entusiasmado aplaudia os espetáculos produzidos pelas crianças, ainda tão pequenas. As idades variavam entre sete e onze anos. Pedro, o mais velho, era o diretor da Companhia. A estrela, Marinha. Aos dez anos a menina já anunciava a beleza que despontaria anos mais tarde. As peças improvisadas, jamais escritas ou decoradas, tinham por inspiração histórias narradas às crianças pela avó de Pedro. O figurino dos personagens era tomado emprestado nos guarda roupas dos pais; adornos e jóias confeccionados em papel crepom.

      E foi assim, como todos os outros, montado o último espetáculo: Rapunzel. Nesta montagem uma surpresa: Pedro exigiu para si, além da direção, o papel do Príncipe. Houve revolta. Afinal o galã era sempre o Tonho. A discussão terminou quando Pedro ameaçou deixar a Companhia: capitularam sem entender o porquê da insistência. Mas nem mesmo Pedro entendia o mal estar que sentia quando imaginava que outro, que não ele, iria tocar os cabelos de Marinha. Ele tinha fascinação pelos cabelos da menina: negros, brilhantes, fartos, chegando até a cintura. Até sonhava com eles! E se enfureceu quando Fabinho, que fazia o papel do Pai de Rapunzel, comentou que os cabelos da Princesa deviam ser louros e que só uma menina loura poderia fazer o papel. Pedro, indignado, invocou a presença da avó para atestar que Rapunzel era morena. Esta percebendo que por alguma razão isto era importante para o neto adorado, afirmou: os cabelos de Rapunzel eram negros! Muito negros! Diante deste abalizado testemunho todos se calaram e Marinha foi confirmada como Rapunzel.

      O espetáculo foi lindo. Emocionada, a platéia tomada por fértil imaginação, via uma altíssima torre no lugar da escada de quatro degraus da cozinha da casa de Tonho, onde Marinha-Rapunzel, num equilíbrio instável e interpretação irrepreensível, escutava o chamado de Pedro-Príncipe: Rapunzel, solta seus cabelos!  Num gesto dramático, Marinha os lançava escada abaixo para que Pedro os pudesse utilizar como corda para juntar-se à amada. Terminado o espetáculo a platéia aplaudiu frenética enquanto os atores de mãos dadas se curvavam agradecendo.

      Quando foi servido o lanche de costume (cachorro quente e coca-cola) a terrível notícia caiu como um raio.  A família de Rapunzel, quer dizer de Marinha, iria mudar-se para São Paulo!  Aquele seria seu último espetáculo como estrela da Companhia. E Pedro sentiu o coração apertar. Nunca mais iria ver aqueles cabelos lindos, que agora havia tocado. Eram macios, tão macios!
* * *
      Pedro, aos vinte e cinco anos, sorri no pensamento: ainda sinto o coração apertado. Como estará Marinha hoje em dia? Com certeza cortou os cabelos. E vem uma idéia maluca: ela poderia ter sido a mulher de minha vida. Mas naquele tempo eu não percebia. Era tão criança...  
* * *
      A amiga de Marinha espanta-se: que ideia! Deixar de ir ao almoço da turma para ver um desenho animado! Pirou? Marinha sorri: não é um desenho animado. É a história de Rapunzel! A amiga espanta-se: e daí? Espanta-se mais ainda com a resposta de Marinha: o Príncipe, poderia ter sido o homem de minha vida! .  
* * *
      A fila do cinema está enorme. Crianças acompanhadas pelos pais fazem uma enorme algazarra. Pedro sente-se deslocado: o que é que eu estou fazendo aqui?  Marinha, um pouco adiante na fila, sonha: será que o Príncipe se parece com Pedro? Sem saber por que o faz, retira a presilha que prende os longos cabelos que nunca teve coragem de cortar. Eles caem sobre seus ombros chegando à cintura. Ouve-se um grito: Rapunzel! Ela se volta e deslumbrada reconhece Pedro que corre em sua direção. Os que estão na fila, espantados, observam o casal que se abraça comovido e depois parte, mão na mão, em direção à vida.


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