Hoje, passados tantos anos, nenhum deles
consegue lembrar como e porque o Teatro havia surgido. Aquela vila de subúrbio
era o palco e os pais o público que entusiasmado aplaudia os espetáculos
produzidos pelas crianças, ainda tão pequenas. As idades variavam entre sete e onze
anos. Pedro, o mais velho, era o diretor da Companhia. A estrela, Marinha. Aos dez
anos a menina já anunciava a beleza que despontaria anos mais tarde. As peças improvisadas,
jamais escritas ou decoradas, tinham por inspiração histórias narradas às
crianças pela avó de Pedro. O figurino dos personagens era tomado emprestado nos
guarda roupas dos pais; adornos e jóias confeccionados em papel crepom.
E foi assim, como todos os outros, montado
o último espetáculo: Rapunzel. Nesta montagem uma surpresa: Pedro exigiu para
si, além da direção, o papel do Príncipe. Houve revolta. Afinal o galã era
sempre o Tonho. A discussão terminou quando Pedro ameaçou deixar a Companhia: capitularam
sem entender o porquê da insistência. Mas nem mesmo Pedro entendia o mal estar
que sentia quando imaginava que outro, que não ele, iria tocar os cabelos de
Marinha. Ele tinha fascinação pelos cabelos da menina: negros, brilhantes,
fartos, chegando até a cintura. Até sonhava com eles! E se enfureceu quando
Fabinho, que fazia o papel do Pai de Rapunzel, comentou que os cabelos da
Princesa deviam ser louros e que só uma menina loura poderia fazer o papel.
Pedro, indignado, invocou a presença da avó para atestar que Rapunzel era
morena. Esta percebendo que por alguma razão isto era importante para o neto
adorado, afirmou: os cabelos de Rapunzel eram negros! Muito negros! Diante
deste abalizado testemunho todos se calaram e Marinha foi confirmada como
Rapunzel.
O espetáculo foi lindo. Emocionada, a platéia
tomada por fértil imaginação, via uma altíssima torre no lugar da escada de
quatro degraus da cozinha da casa de Tonho, onde Marinha-Rapunzel, num
equilíbrio instável e interpretação irrepreensível, escutava o chamado de
Pedro-Príncipe: Rapunzel, solta seus
cabelos! Num gesto dramático, Marinha os lançava escada abaixo para
que Pedro os pudesse utilizar como corda para juntar-se à amada. Terminado o
espetáculo a platéia aplaudiu frenética enquanto os atores de mãos dadas se curvavam
agradecendo.
Quando foi servido o lanche de costume (cachorro
quente e coca-cola) a terrível notícia caiu como um raio. A família de Rapunzel, quer dizer de Marinha,
iria mudar-se para São Paulo! Aquele
seria seu último espetáculo como estrela da Companhia. E Pedro sentiu o coração
apertar. Nunca mais iria ver aqueles cabelos lindos, que agora havia tocado.
Eram macios, tão macios!
* * *
Pedro, aos vinte e cinco anos, sorri no
pensamento: ainda sinto o coração
apertado. Como estará Marinha hoje em dia? Com certeza cortou os cabelos. E
vem uma idéia maluca: ela poderia ter sido a mulher de minha
vida. Mas naquele tempo eu não percebia. Era tão criança...
* * *
A amiga de Marinha espanta-se: que ideia! Deixar de ir ao almoço da turma
para ver um desenho animado! Pirou? Marinha sorri: não é um desenho animado. É a história de Rapunzel! A amiga
espanta-se: e daí? Espanta-se mais
ainda com a resposta de Marinha: o
Príncipe, poderia ter sido o homem de minha vida! .
* * *
A fila do cinema está enorme.
Crianças acompanhadas pelos pais fazem uma enorme algazarra. Pedro sente-se deslocado:
o que é que eu estou fazendo aqui? Marinha, um pouco adiante na fila, sonha: será que o Príncipe se parece com Pedro? Sem
saber por que o faz, retira a presilha que prende os longos cabelos que nunca
teve coragem de cortar. Eles caem sobre seus ombros chegando à cintura. Ouve-se
um grito: Rapunzel! Ela se volta e deslumbrada
reconhece Pedro que corre em sua direção. Os que estão na fila, espantados,
observam o casal que se abraça comovido e depois parte, mão na mão, em direção
à vida.
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